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O Homem do Castelo Alto | As diversas realidades de Philip K Dick

Para qualquer leitor familiarizado com os textos de Philip K. Dick (ou PKD), não é surpresa encontrar uma narrativa que apresenta personagens transtornados e conceitos complexos ao explorar identidade e natureza humana, sem contar o tópico favorito do autor: questionar tanto a realidade do universo que cria em seus livros, quanto a do próprio leitor.

Responsável por diversas obras intrigantes que conseguiram estabelecer seu nome como um dos maiores expoentes do movimento new wave da ficção científica, caracterizado por uma abordagem mais experimental do gênero, Philip K. Dick também teve grande parte de suas obras adaptadas para o cinema, como aconteceu com Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, traduzido para a grande tela por Ridley Scott no clássico Blade Runner (1982). Entre a lista de leituras essenciais do autor, como Ubik ou Fluam, minhas lágrimas, disse o policial, costumo dizer que O Homem do Castelo Alto é a sua obra mais completa. As distopias sempre foram reconhecidas na ficção científica como uma ferramenta de crítica social e política, mas nem todas sabem aproveitar a premissa ou desenvolver o enredo tão bem quanto O Homem do Castelo Alto.

A obra examina uma realidade alternativa da história, na qual os países do eixo conseguem derrotar os “aliados” na Segunda Guerra Mundial, fazendo com que o Japão e uma Alemanha nazista tornem-se as maiores potências mundiais, enquanto outras nações sejam destruídas, outras dividias, como acontece com os Estados Unidos. Assim, seguimos o drama de personagens completamente diferentes, tentando sobreviver em um mundo instável, como o inseguro Robert Childan, um antiquário de peças americanas para colecionadores; o operário judeu, Frank Frink, que tenta esconder sua origem; Nobosuke Tagomi, um burocrata lidando com delicadas relações políticas; e Juliana Frink, ex-esposa de Frank, e instrutora de judô, que fica obcecada por um livro proibido que fala sobre um universo alternativo no qual os nazistas perderam e a guerra foi vencida pelos “aliados”.

Um mundo psicótico, este em que vivemos. Os loucos estão no poder. Há quanto tempo sabemos disso?

Por mais que hoje a proposta pareça óbvia, e sequer foi a primeira vez que narrativas envolvendo realidades distópicas pós-guerra foram feitas, o diferencial de O Homem no Castelo Alto está na abordagem de Philip K. Dick, provavelmente o autor que passou mais tempo explorando a concepção de realidade do que qualquer outro. Por esse motivo, a sua construção de mundo envolve um tremendo exercício de imaginação, mas também, uma dedicação em manter um pé na nossa realidade (ou o que se passa por ela) para explorar um efeito borboleta de eventos que coincidem na vitória do eixo. Mas antes de mencioná-los, é necessário descermos ainda mais na toca do coelho e explorar a metalinguagem da obra.

philip k dick
Philip K Dick

Considere isso: você, leitor, está com O Homem do Castelo Alto, escrito por Philip K. Dick em mãos. No universo apresentado nos parágrafos anteriores, os personagens entram em contato com um livro, escrito por um homem chamado Hawthorne Abendsen, intitulado “O Gafanhoto Torna-se Pesado”, que explora uma realidade na qual o eixo na verdade perdeu a guerra. Essa é a primeira camada da metanarrativa de PKD, que não acaba por aí, já que a possível realidade do texto fictício (difícil usar palavras como essa nessa resenha com firmeza) de Abendsen revela um mundo similar ao nosso, mas não o mesmo, já que nesse uma grande guerra envolve Estados Unidos e Inglaterra. Ou seja, temos uma realidade em cima de outra, em cima de outra. Tendo isso em mente, podemos seguir em frente.

No livro dentro do livro, um dos principais acontecimentos responsáveis pela vitória dos nazistas está na morte do presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, circunstância que manteria o país na crise da Grande Depressão, o enfraquecendo no futuro. É esse tipo de atenção aos detalhes e criatividade que faz o texto de PKD um experimento tão consistente, sem contar que, mesmo inserindo tanta informação, temos um enredo limpo e objetivo, e isso considerando o fato do universo da obra também introduzir elementos como exploração espacial, o que fica apenas em segundo plano e serve mais como parte da construção de mundo, mas surpreendentemente combina perfeitamente com a proposta de expansão dos países vitoriosos do eixo, que decidiram também dominar o espaço.

Enquanto os alemães estavam ocupados em lançar no espaço enormes sistemas robotizados, os japoneses queimavam as florestas do interior do Brasil, erguendo edifícios de apartamentos de oito andares, de barro, para ex-caçadores de cabeças. Até os japoneses lançarem seu primeiro foguete, os alemães tinham posto o sistema solar no bolso. P.19

Mas há outra obra literária de enorme importância dentro da narrativa, assim como para o próprio autor. Em O Homem do Castelo Alto, a maior parte da população tem o costume de consultar o I Ching, o Livro das Mutações, uma obra que ajudou a popularizar parte da filosofia chinesa para o resto do mundo, atuando como um oráculo, ou apenas apresentando textos de sabedoria. Ao contrário de “O Gafanhoto Torna-se Pesado”, o I Ching não existe apenas na realidade dos personagens de O Homem do Castelo Alto, mas na nossa, e Philip K. Dick o utilizou constantemente no desenvolvimento de seu livro. Esses detalhes enriquecem a construção de mundo, introduzindo detalhes sobre suas esferas sociais e políticas, mas ao mesmo tempo, essa não é uma leitura complexa. O autor consegue uma narrativa limpa e clara, ainda que insira bastante informação em apenas uma página. O livro não promete reviravoltas explosivas na trama, mas não deixa de trazer surpresas, e a maior parte do conflito é desenvolvido em cima da tensão entre países e núcleos dramáticos específicos.

São vários personagens, alguns se encontram, outros não, e pode ser necessário uma atenção extra para lembrar todos os nomes, já que alguns personagens possuem mais de um, mas é uma preocupação que pode ser deixada de lado rapidamente porque, assim que as subtramas começam a convergir, tudo passa a ficar mais claro. Aqui temos, provavelmente, o livro em que o autor melhor aproveita suas personagens. É comum que autores de ficção científica prezem por uma narrativa com um foco maior na trama, principalmente para destacar os elementos do gênero em suas histórias, e Philip K. Dick entra nessa categoria diversas vezes. Talvez por esse motivo O Homem do Castelo Alto tenha se tornado, para muitos, a obra máxima do autor, a que melhor utilizou o enredo em função das personagens, construindo ótimos diálogos e fortalecendo suas interações com o universo alternativo.

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O Homem do Castelo Alto, série da Amazon Prime Video

Além disso, mesmo sendo um grande fã do autor, sempre critiquei a forma que ele deixa as mulheres em segundo plano no seu texto, atuando como coadjuvantes, quando sequer possuem essa função (esse foi outro problema da ficção científica por anos), mas aqui temos Juliana Frink, uma das melhores personagens de sua biblioteca, uma mulher forte e inteligente que passa a ser uma peça essencial para os momentos finais do livro – e que final espetacular, mas não vou mencioná-lo aqui para evitar estragar alguma coisa. Quanto aos temas da obra, ela não se limita aos debates sobre realidade, mas ao que conhecemos como a verdade.

Pegando emprestado conceitos da filosofia chinesa, o livro está constantemente nos fazendo pensar o conceito de historicidade, ou seja, no valor histórico de algo. No livro, temos as peças de Childan, que são importantes apenas por conta da história que contam, principalmente os artefatos vindos dos EUA, já que o país foi tomado pelos nazistas e sua cultura só possui qualquer valor por conta disso (o que rende uma das revelações mais engraçadas do livro, envolvendo um relógio com uma ilustração de Mickey Mouse). O contraste inteligente feito pelo autor está no fato de estarmos debatendo o que é real ou não enquanto Childan percebe que parte de suas peças são falsificadas.

A verdade é tão terrível quanto a morte, apenas mais difícil de encontrar.

Philip K Dick nunca deixa de brincar com nossas certezas e arrancar o leitor da zona de conforto à força, o que faz em certo ponto quando chega a jogar uma de suas personagens em outra realidade (talvez a nossa, mais uma camada de metanarrativa), apenas para que tenha um vislumbre das possibilidades. Inclusive, o autor arranja espaço para debater a própria ficção científica e as experimentações que oferece. Tudo acontece em apenas uma página, através de um diálogo, mas dá para notar como PKD defende o gênero (aprende, Margaret Atwood).

O Homem do Castelo Alto é um livro relativamente pequeno (considerando a quantidade de informação que o autor introduz em cada página), mas com um universo e personagens fortes o suficiente para torná-lo uma das obras mais estudadas de Philip K Dick. Por conta do formato e estrutura narrativa, esse acaba sendo o trabalho mais distintos da biblioteca do autor, um que sempre quis nos lembrar como é frágil nossa realidade, isso porque ele foi o único capaz de estar em todas ao mesmo tempo.

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O Colonizador (G. G. Diniz) | O pesadelo de dias ruins

Com a proposta de explorar a evolução da ficção científica nacional, a editora Plutão decidiu criar a série Ziguezague, onde apresenta três “ondas” capazes de construir um panorama da literatura especulativa no Brasil, resgatando autores e obras que contribuíram para a formação do gênero no país, assim como difundindo nomes promissores. Portanto, tivemos autores pioneiros da “primeira onda”, como Jeronymo Monteiro (com seu Três Meses no Século 81); e logo chegamos aos grandes historiadores e divulgadores do gênero, como Finisia Fideli (O Ovo do Tempo), na “segunda onda”. Para a “terceira onda”, a editora traz alguns autores que representam a atual literatura FC, com a sua rica diversidade e uma forte identidade.

Da “terceira onda”, o nome que mais me chamou a atenção foi Gabriele Diniz (mais conhecida por G.G.Diniz), alguém que eu já sigo há um bom tempo, não só pelas obras literárias, mas pelo ótimo canal no Youtube, intitulado Usina de Universos, onde faz suas resenhas e analisa o cenário do mercado editorial brasileiro (quando não decide simplesmente sentar em sua rede e divagar sobre temas problemáticos de suas leituras).

Autora fortalezense, Diniz também criou, ao lado de Alec Silva e Alan de Sá, o movimento literário Sertãopunk, uma resposta direta ao chamado Cyberagreste, que infelizmente caiu em território de apropriação cultural ao ter autores não-nordestinos escrevendo sobre algo que não faz parte de sua realidade. Assim, o Sertãopunk realmente se beneficia do enorme diferencial de lugar de fala e vivência. Para saber mais sobre o assunto, leia o artigo do próprio Alan de Sá: Por que fazer o Nordeste Sertãopunk?.

Em sua primeira colaboração com a editora Plutão, G.G. Diniz acaba de publicar O Colonizador, uma noveleta “curta”, ainda assim um de seus trabalhos mais envolventes, não só pela premissa com elementos de ficção científica, mas a execução inteligente de temas delicados, como violência e abuso.

Jandira é recém-formada e acabou de ser aceita em uma vaga para exobiologia, auxiliando o renomado dr. Costa. Ela está animada com as possibilidades do projeto, que envolve estudar um “fungo alienígena” capaz de entregar mais informações sobre uma civilização extinta. Mas o sonho de Jandira, assim como o projeto, podem ser comprometidos por um laboratório em péssimas condições e as atitudes inapropriadas de seu supervisor, que além de incompetente, está cada vez mais difícil de suportar por conta de seus avanços indesejados.

Gabriele Diniz do canal Usina de Universos

A narrativa de Diniz tem êxito quando procura construir uma atmosfera de incerteza e tensão entre os personagens. Cada diálogo é revelador, sem tornar o texto desnecessariamente expositivo, ainda mais considerando como a autora precisa conciliar o drama da protagonista com o desenvolvimento da ficção científica.

Entre os comentários repulsivos do dr. Costa e o dilema de Jurema, sem saber como lidar com o assédio de seu supervisor, também há espaço para introduzir e estabelecer bem personagens coadjuvantes, a maioria com características e personalidade bem definida, o que não é essencial para a quantidade de páginas de noveleta, mas importa para a narrativa mais sensível de Diniz.

Ainda que a subtrama envolvendo um “fungo extraterrestre” seja relevante para o enredo, o que realmente chama a atenção em O Colonizador é a abordagem inteligente e delicada para um necessário debate sobre assédio e violência sexual. Além disso, não faltam críticas à falta de recursos para o setor de pesquisas científicas no Brasil.

O que pode ser um incômodo para alguns é a mudança em tom quando a história se aproxima dos capítulos finais, trazendo uma abordagem mais voltada para a ação, o que compromete o drama por uma tentativa de aumentar a escala do núcleo especulativo. Esse desvio narrativo acaba se mostrando um pouco impaciente ao executar sequências que lembram outros thriller FC, como os filmes Alien ou O Enigma de Outro Mundo.

Há um outro tropeço na revisão do texto, principalmente na perspectiva do narrador. A obra é apresentada por um ponto de vista em primeira pessoa, mas por algum motivo, um dos capítulos tem uma mudança inesperada para a terceira pessoa. Pode ser uma decisão da autora, mas pareceu confuso e sem propósito, por isso imagino que seja algo que passou despercebido pela revisão. Felizmente, nada que atrapalhe a experiência geral. 

O Colonizador é mais um grande acerto da editora Plutão, que dessa vez trouxe uma das vozes mais fascinantes da ficção científica nacional contemporânea. Gabriele Diniz traz uma narrativa provocante, sem esquecer que uma das características mais fortes da ficção especulativa é aproveitar o universo fictício para comentar uma realidade que precisa ser encarada.

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O Horror Cósmico de H.P. Lovecraft e suas Influências

“Todos os meus contos são baseados na premissa fundamental que as leis, interesses e emoções humanas não possuem valor ou significância na vastidão do cosmos”

Conhecido também por ficção lovecraftiana ou até cosmicismo, o Horror Cósmico vem crescendo cada vez mais entre os fãs de ficção científica. E como dá para perceber pelo nome, a ficção lovecraftiana existe por conta do escritor Howard Phillips Lovecraft. Mas como gêneros literários são fenômenos em constante mudança e movimento, nunca é simples demais definir quem criou o quê de maneira tão simples. 

Temos o próprio Edgar Allan Poe, que já trazia elementos de horror cósmico em suas obras antes de Lovecraft, tanto que Lovecraft se inspirou muito nele. Mas como o foco das narrativas de Poe é voltado para a escrita policial e de mistérios macabros, não só no horror cósmico, é compreensível porque foi na escrita de Lovecraft que o gênero tomou mais corpo. Suas obras são carregadas de elementos que marcaram o gênero, como sua atmosfera apocalíptica, horror corporal, um mal ancestral e indescritível, parasitas espaciais, entre vários outros. E é aí que entra a pergunta: O que é o horror cósmico, afinal?

Em seu ensaio “O horror sobrenatural na literatura”, de 1927, H.P. Lovecraft tenta explicar melhor o que ele considera uma verdadeira história de ficção Weird, que é um gênero no qual o horror cósmico se encaixa:

“O verdadeiro weird tale tem algo mais do que apenas homicídios, ossos ensanguentados ou uma lista de regras estabelecidas. Há uma certa atmosfera ofegante e um temor inexplicável de que forças siderais e desconhecidas possam estar presentes”.

Arte de Andree Waliin sobre o Mito de C´tchullu
Arte de Andree Waliin

Podemos seguir essa definição do próprio Lovecraft, o que muitos fazem, mas vamos debater mais sobre esse assunto. O horror cósmico é um gênero que explora o inevitável e o desconhecido. Diversas vezes falando sobre o encontro do ser humano com uma informação ou descoberta que não é capaz de compreender. Muitos chegam a ficar loucos por conta disso, e por isso a paranóia é bem comum em narrativas como essa.

Essa incapacidade de simplesmente não ter como reagir ou descrever o que está vendo, por conta de ser algo que desafia completamente a sua percepção do que é possível e real, é muito bem representado em um dos contos mais conhecidos de Lovecraft, “O Chamado de Cthulhu”, onde o autor descreve uma criatura que lembra uma mistura entre um polvo, um dragão e uma caricatura humana, com metros de altura e um par de asas. 

Mesmo que o horror cósmico tenha monstros e outros tipos de criaturas que ajudam na construção da trama, essa é uma narrativa que também explora a insignificância humana comparada a vastidão do universo. É por conta disso que algumas pessoas costumam atribuir ao gênero uma característica de niilismo existencial, essa morte do sentido e da realidade. Por conta disso, os protagonistas costumam confrontar o pensamento de que sua existência é fútil comparada ao resto do universo, que o trata com indiferença.

Isso acaba trazendo um tom bem pessimista para o núcleo dramático do horror cósmico, o que faz com que muitos personagens simplesmente concluam sua jornada através do suicídio. Essas narrativas são caracterizadas pela falta de esperança. 

Podemos usar o termo desespero do event horizon, ou o desespero do ponto de não-retorno. Esse termo (inspirado em um conceito da cosmologia) fala dessa linha, que uma vez atravessada, acaba com qualquer sentimento de esperança. Aqui, um personagem desistiu de tudo, seja sua missão, uma pessoa ou até a própria vida, e não há volta. 

O gênero influenciou bastante a literatura, com autores como Stephen King, que entrou de cabeça na atmosfera do horror cósmico, e acabou criando um estilo próprio, que até serve de contraste para a abordagem Lovecraftiana, com suas obras IT: A coisa e O Iluminado. Além dele, temos a pesquisadora Julia Kristeva, que estuda a sensação de melancolia na literatura e a abjeção em narrativas de horror, como fez em Powers of Horror. E eu não posso deixar de mencionar Alan Moore, o mago dos quadrinhos, que já homenageou Lovecraft diversas vezes, principalmente em suas obras Neonomicon e Providence.

O escritor Alan Moore
Alan Moore

A televisão também foi bastante influenciada por Lovecraft, como a recente produção da HBO, Lovecraft Country, uma série que se utiliza dos elementos narrativos do horror cósmico, mas vai além e traz uma inteligente análise do racismo, uma das características mais problemáticas do autor.

Outra série da HBO que bebeu da fonte Lovecraftiana é a primeira temporada de True Detective, onde o personagem Rust Cohle, interpretado por Matthew McConaughey, está constantemente fazendo monólogos sobre a insignificância dos rituais humanos dentro do contexto cósmico. Além disso, há várias referências visuais e menções à obras de Robert W. Chambers, Ambrose Bierce e, claro, o próprio Lovecraft.

Muitos costumam usar a animação Rick and Morty como exemplo para alguns dos temas do gênero, principalmente a crise existencial e o já mencionado desespero do ponto de não-retorno, mas uma outra animação que conseguiu carregar a mesma atmosfera e até referenciou algumas obras do autor em seus monstros da semana, foi a divertida e assustadora Coragem, o Cão Covarde

No cinema, o horror cósmico tem sido um desafio para muitos diretores, principalmente Guillermo Del Toro, que tenta financiar uma adaptação de Nas Montanhas da Loucura, mas nunca consegue. Além disso, não é uma tarefa fácil representar visualmente um gênero conhecido por confrontar o indescritível. 

Mas tivemos bons filmes, como O Nevoeiro, de Frank Darabont, onde um grupo de pessoas se esconde em um supermercado para fugir de uma tempestade, mas logo uma neblina toma conta da cidade e uma ameaça maior pode estar próxima. E também temos o drama Aniquilação, de Alex Garland, que discute o desconhecido e o inexplicável, quando um grupo de cientistas precisa investigar uma anomalia alienígena.

Mas o filme que talvez tenha melhor representado a paranóia e os elementos do horror cósmico de maneira inteligente seja O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter. Na trama, uma equipe de pesquisa na Antártida é aterrorizada por uma criatura alienígena capaz de assumir a aparência de qualquer ser vivo. Assim, todos precisa lidar com o fato de que eles possam ser a criatura.

Filme O Enigma de Outro Mundo de John Carpenter

Além da excelente direção de Carpenter, os efeitos visuais impecáveis e a música do mestre Ennio Morricone, O Enigma de Outro Mundo é um roteiro fortemente influenciado por Lovecraft, principalmente a sua obra Nas Montanhas da Loucura, onde o protagonista narra os eventos de uma expedição desastrosa à Antártida, na esperança de evitar que mais alguém tente retornar ao local.

O horror cósmico é um gênero que traz incontáveis possibilidades. E por isso é decepcionante ver como algumas narrativas de horror cósmico se limitando apenas aos elementos que causam o susto barato através das criaturas, que são ótimas, mas quando encaixadas em um bom enredo, um em que todo esse confronto humano com o vazio e o cósmico pode ser uma boa oportunidade para questionarmos a vastidão de nossa própria identidade.

Por que estou aqui? Qual o meu propósito? E se realmente existir vida lá fora, além da Terra? Não é questão de realmente ver o indescritível, muitas vezes é apenas o pensamento do que pode estar escondido nas sombras que aterroriza a mente humana.

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A Parábola do Semeador | A Empatia é a Salvação

“Todas as lutas são lutas por poder”

A ficção científica dispõe de diversas narrativas capazes de experimentar possíveis realidades distópicas, seja através dos governos totalitários ou até a opressão por conta de uma certa utopia alienadora. Muitas vezes, essas histórias são protagonizadas por um herói insatisfeito com a sua condição, que por fim se rebela contra o sistema e consegue trazer uma mudança no pensamento de todos, acabando com a figura opressora. Para a autora Octavia E. Butler, esse herói não existe, mas a mudança é possível, apenas exige muito esforço.

Em seu livro A Parábola do Semeador, lançado originalmente em 1993, Butler comenta a maneira na qual a história se repete através do comportamento humano. Seguindo a filosofia de vida de Nina Simone, na qual afirma que “o dever do artista é refletir sobre sua realidade”, Butler especula sobre nossos caminhos e os obstáculos que negligenciamos, principalmente os econômicos e ambientais.

A Parábola do Semeador começa em 2024 e é narrado por Lauren Oya Olamina, uma jovem vivendo em uma sociedade falida, afetada por mudanças climáticas e escassez de recursos básicos, como a própria água. Além disso, as cidades são controladas por grandes corporações, e quem não trabalha para elas, simplesmente tenta sobreviver como pode.

Arte conceitual de Eran Fowler
Arte conceitual de Eran Fowler

Lauren mora na Califórnia, em uma comunidade pequena, onde todos precisam andar armados e revestir os muros em volta com arame farpado e pedaços de vidro, isso porque são constantemente invadidos por pessoas procurando roubar seus poucos pertences, isso quando não possuem intenções ainda mais malígnas. Como se a situação não fosse ruim o suficiente, Lauren lida com um fenômeno chamado hiper empatia, que faz com que ela compartilhe a dor e o prazer de outras pessoas. Em um mundo onde existe apenas tristeza e solidão, sentir em demasia pode ser mortal. 

“Mas se todos pudessem sentir a dor um do outro, quem torturaria? Quem causaria qualquer dor desnecessária a alguém?”

A literatura de Butler é carregada de símbolos, e por ser uma autora preta que começou a escrever ficção científica, gênero constituído majoritariamente por homens brancos, em uma época em que as manifestações por direitos iguais para a comunidade afro-descente nos Estados Unidos estava no auge, é fácil afirmar que seu ponto de vista era mais do que necessário, e isso explica o impacto de seu texto e a força com a qual retornou nos últimos anos, principalmente influenciando diretamente movimentos literários como o Afrofuturismo. No Brasil, suas obras têm sido publicadas pela editora Morro Branco (que também fez um excelente trabalho de resgate de outro grande autor, Samuel R. Delany).

A Parábola do Semeador carrega, em sua maior parte, um tom pessimista e deprimente, considerando a quantidade de violência “gráfica” durante os momentos mais pesados da obra, marcados por sangue e abuso. Octavia é uma escritora sem rodeios, seu texto é protesto e ela não tem medo de comentar temas arriscados de forma visceral. Sexo, religião, política e racismo são tópicos indispensáveis; e por mais que essa seja considerada uma expressão batida, poucos autores realmente “permanecem relevantes e atuais” como Butler.

Octavia E. Butler
Octavia E. Butler

Entre as diversas subtramas apresentadas no livro, mesmo que estejam acontecendo em segundo plano, temos um personagem chamado Donner, um político vivendo pela sua promessa em “trazer de volta a glória, a riqueza e a ordem do século XX”. As semelhanças com o contexto político atual não é uma previsão, mas as preocupações de uma autora capaz de estudar a humanidade e nos lembrar como a história é cíclica, e vive se repetindo.

“Os fracos podem vencer os fortes se os primeiros resistirem. Persistir nem sempre é seguro, mas costuma ser necessário”

Butler nos traz uma protagonista complexa. Lauren é jovem e impulsiva, mas também é inteligente e sua empatia faz com que o senso de comunidade seja mantido mesmo em um cenário tão desolador. A relação de Lauren com sua religião, e por extensão seu Deus, é outro grande diferencial da obra. Para a personagem, Deus representa mudança, mas é indiferente, não favorece ou detesta, apenas é. Essa abordagem mais filosófica encaixa bem com a natureza da narrativa, principalmente considerando sua ambientação.

A escrita da autora é quase cinematográfica, com descrições rápidas, mas eficientes. Um diálogo pode mudar completamente o rumo de tudo; há atenção aos detalhes, como pequenos trejeitos dos personagens; as sequências de ação são cheias de tensão por conta do texto limpo e objetivo, mas impactante.

Arte de John Jude Palencar
Arte de John Jude Palencar

Há até espaço para que Butler crie sua própria corrida espacial, introduzindo elementos como exploração e colonização do espaço, que continua acontecendo, mesmo com todos os problemas na Terra de 2024. Esse pode ser um comentário da autora sobre os movimentos pelos direitos civis da década de 1960, onde era possível ver o contraste entre a comunidade afro-americana lutando por igualdade racial enquanto o resto da atenção dos EUA se voltava à chegada do homem à lua.

A Parábola do Semeador é um livro intenso e corajoso. Até onde o ser humano consegue aguentar e seguir em frente, mesmo que todos pareçam estar contra você? A jornada de Lauren é difícil e perigosa, mas é necessária apenas uma semente de empatia para que uma enorme mudança aconteça. 

Tudo o que você toca.

Você muda.

Tudo o que você Muda.

Muda você.

Capa do Livro A Parábola do Semeador

A Parábola do Semeador (Octavia E. Butler, 1993)

Edição Nacional de Editora Morro Branco, 2018

Tradução de Carolina Caires Coelho

Projeto Gráfico de Luana Botelho

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Admirável Mundo Novo | O direito de ser infeliz

Aldous Huxley entra na lista de autores que mudaram completamente a ficção científica e a literatura pela maneira que usou o seu enredo para construir uma crítica social e política pertinente até hoje. Sua narrativa distópica, Admirável Mundo Novo, publicado originalmente em 1932, coloca o nome de Huxley entre grandes como George Orwell (1984) ou Ievguêni Zamiátin (Nós), mas há uma riqueza em detalhes e elementos que fazem com que sua obra divirja das demais.

A proposta inicial de Admirável Mundo Novo está na exploração da humanidade através do avanço das civilizações, principalmente em um contexto tecnológico. O que a obra consegue, além de entregar uma leitura provocante, é explorar tópicos inéditos, prevendo avanços científicos como os conceitos de hipnopedia e manipulação psicológica, assim como estudos envolvendo manipulação genética e a abordagem behaviorista.

Na futurística Londres de 632 d.F, é o Estado Mundial quem dita as regras, sustentando o seu lema de “comunidade, identidade e estabilidade”. Criados em laboratório, os habitantes possuem funções pré-determinadas para manter uma hierarquia social (dividida em castas) capaz de atingir um equilíbrio utópico, um futuro onde a velhice pode ser retardada, a solidão é literalmente proibida e pensamentos ruins podem ser eliminados pelo consumo de uma droga chamada soma.

Assim, somos apresentados ao personagem Bernard Marx, que ao contrário de seus companheiros faz questão de ser crítico ao governo e possui um complexo de inferioridade por conta de sua baixa estatura, mesmo fazendo parte de uma das castas mais altas da sociedade. Ao contrário dele, Lenina Crowne é uma jovem contente e sem medo de demonstrar seus desejos sexuais ou a alegria em depender de soma. O único amigo de Marx é Helmholtz Watson, escritor insatisfeito com seu trabalho. 

Admirável Mundo Novo

Aproveitando suas férias ao lado de Lenina, Bernard visita Malpaís, uma reserva selvagem fora do território comandado pelo governo. Eles conhecem John, um rapaz que cresceu na reserva depois de sua mãe se perder no local e engravidar, uma vergonha tão grande que a fez abandonar o Estado Mundial. Isso também faz com que John não seja acolhido pela tribo, e aprenda a ler por meio da única fonte de leitura acessível, uma coleção das peças de Shakespeare. Ao retornar para a cidade, Bernard e Linda são acompanhados pelo selvagem.

Narrativas distópicas correm o risco de se limitar aos elementos superficiais do gênero, como os governos totalitários e a ambientação desoladora, e oferecer uma construção de mundo rasa e péssima execução. O principal risco de Aldous Huxley está em sua tentativa de examinar um sistema totalitário através de uma aparente utopia. Há regras e limitações, mas a verdadeira distopia é aquela abraçada pela própria população, confortável em sua alienação e ignorância. A farsa é acolhedora, e não há tempo para insatisfação contra o governo quando ele proporciona tantas opções tentadoras e convenientes de manter a sociedade distraída.

“Um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos […] e seu exército de administradores controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão” (Huxley)

Apoiado em uma crítica direta ao Fordismo, os conceitos de produção em massa e a homogeneidade de seres humanos em Admirável Mundo Novo são essenciais para compreendermos a construção de mundo proposta pelo autor. Mesmo que os personagens julguem-se livres de religiões ou mesmo um Deus, a admiração instintiva à figura do magnata industrialista Henry Ford, considerado o “criador” dessa sociedade, carrega seus próprios dogmas. Não só clamam e juram em nome de Ford, como todo o calendário é remodelado para adotar o termo d.F (“depois de Ford”). A data na obra é descrita como 632 d.F, equivalente ao ano 2540 d.C. 

De acordo com Huxley, sua maior inspiração para a obra é o autor H.G. Wells e seu romance Men Like Gods. Valendo-se de alguns elementos, Admirável também compartilha similaridades (ao ponto de alguns considerarem plágio) com a distopia Nós, do russo Ievguêni Zamiátin. Além de referenciar Wells, Huxley utiliza outros nomes não ficcionais para uma base mais realista no estabelecimento do contexto da obra, e ao lado de Henry Ford, temos figuras como Sigmund Freud e Ivan Pavlov criando um paralelo com os principais temas da obra.

Com tantos argumentos para explorar, o texto limpo e descritivo de Huxley contribui para uma leitura que deixa clara a sua intenção e não cai na armadilha de ser enfadonho. Ainda que seja necessariamente expositivo através de alguns diálogos e tenha um clímax onde acaba soando mais didático do que o exigido, o autor faz um excelente trabalho na execução dos temas que propõe. Compreendemos as circunstâncias daquele mundo, portanto o livro oferece informações como a extinção de determinados animais e línguas ou seus rituais sociais. Por serem criados em laboratório e receber funções específicas, os personagens acham conceitos como casamento ou família uma noção absurda e comicamente ofensiva.

O autor Aldous Huxley assinando obras
Aldous Huxley

Entre as várias previsões imprevistas de Huxley, a concepção de um “Cinema Sensível” é uma das mais certeiras, apresentando um cinema sensorial onde toda a experiência de estar em uma sala escura é elevada por conta de artifícios sensoriais, como a sessão ser acompanhada de “um órgão de perfumes”. Com exceção de termos hoje tecnologia capaz de fazer cadeiras vibrantes e realidade virtual, o livro também aproveita o entretenimento descartável com o propósito de manter sua população dessensibilizada, exibindo filmes com teor racista, xenofóbico e sexista.

A experiência de assistir uma obra de arte é trocada pelo próprio ato de ir ao cinema e se maravilhar com todas as novas tecnologias capazes de forçar uma imersão que o filme sozinho é incapaz de realizar. Os habitantes do Estado Mundial tem bibliotecas a sua disposição, mas ler é um esforço mental e solitário demais para eles, e por isso as reuniões no cinema sensível são uma das formas mais cômodas de interação.

“A beleza atrai, e nós não queremos que ninguém seja atraído pelas coisas antigas. Queremos que amem as novas […] O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem”. 

O enredo de Huxley enfatiza o desenrolar dos eventos e deixa o núcleo dramático em segundo plano. Não obstante, há espaço para boas cenas envolvendo as personagens, e mesmo que a obra alterne pontos de vista, eles se mantém entre Bernard, Lenina e John. Enquanto Bernard serve como o observador inicial capaz de ressaltar as inconveniências do mundo ficcional e Lenina cai em um infeliz padrão de narrativas especulativas em que personagens femininas são tratadas apenas como interesse amoroso ou acompanhante reagindo aos feitos do protagonista masculino, é John a figura mais fascinante e complexa. 

Apelidado de “Selvagem”, John é introduzido em um ponto de ruptura da história. Ele tem uma abordagem mais direta com o mundo distópico, enfrentando o contraste cultural entre sua reserva, limitada em recursos, mas rica em rituais e história; e o Estado Mundial, abundante em informação, mas sem interesse por parte da população. Fazer com que o selvagem use a literatura de Shakespeare como a sua única forma de comunicação verbal, é uma das decisão mais inteligentes de Huxley. Em um mundo onde a cultura não é incentivada e a população está confortável com seu destino pré-determinado, a beleza de uma poesia pode não só confundi-los, como incomodar a estrutura social. 

“As flores do campo e as paisagens […] têm um grave defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica”

Admirável Mundo Novo se destaca entre outros livros do gênero por conta de sua abordagem e execução. Em uma narrativa clara, Aldous Huxley entrega um estudo notável sobre a humanidade e questiona se realmente é possível ou válida a promessa de uma utopia. 

Admirável Mundo Novo