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Capitã Nova (2021) | Visitando o futuro para consertar o passado

Produções independentes de ficção científica sempre chamam a minha atenção pelo potencial do que pode ser feito com um orçamento reduzido, e na maioria das vezes são surpresas positivas, compensando efeitos visuais com um enredo e personagens bem construídos. É claro que existem casos onde, mesmo com pouco dinheiro, um filme consegue realizar efeitos visuais de qualidade, afinal o que importa não é só ter a ferramenta, mas saber usá-la (já falei de vários por aqui, como Riqueza Tóxica, A Vastidão da Noite ou I am Mother).

Distribuída pela Netflix, Capitã Nova (Captain Nova) é uma produção holandesa dirigida por Maurice Trouwborst, com uma premissa conhecida entre os fãs de ficção científica. Em um futuro devastado por desastres ambientais, a astronauta Nova (Anniek Pheifer) volta no tempo para alertar a humanidade sobre os eventos catastróficos, mas um efeito colateral da viagem faz com que a astronauta volte à ser uma pré-adolescente, o que faz com que ninguém leve a sério sua mensagem. Com a ajuda de Nas (Marouane Meftah), um garoto que a salva depois de um pouso forçado, Nova (agora interpretada por Kika van de Vijver) parte em sua missão.

Antes de tudo, o que é bom. Sempre aprecio o esforço da equipe responsável pelos equipamentos e efeitos práticos em produções independentes como essa. Aqui as armas “futuristas” plásticas podem entregar um pouco sua artificialidade por conta de uma iluminação ruim nas tomadas que se passam de dia (aí é mais culpa da direção de arte mesmo), mas há dois elementos que recebem mais atenção, a nave e o robô assistente de Nova. O robô, ADD (dublado por Sander Van de Pavert) serve como alívio cômico, e mesmo que não seja engraçado, foi um bom trabalho da equipe, incluindo circuitos para fazê-lo piscar e realizar pequenos movimentos, mesmo limitado a ficar nos ombros de Nova. Quanto à nave, excelente trabalho com a textura e a pintura, e acredito que a própria equipe ficou bastante orgulhosa com o resultado, considerando como adoram deixar a câmera nela, rendendo até uma sequência em que uma personagem encontra a nave e temos um ângulo completo dela.

Anniek Pheifer no filme Capita Nova distribuído pela Netflix
Anniek Pheifer

Elogiar componentes aparentemente simples como uma nave e um robô podem parecer algo supérfluo para o público atual, acostumado com efeitos visuais mais avançados, mas devo dar crédito onde ele merece ser dado, e um filme de orçamento limitado como esse deve receber o elogio pelo bom trabalho de efeitos práticos. Contudo, assim como a obra recebe ser parabéns, tem seus pontos baixos, os maiores deles sendo o enredo e as atuações.

Capitã Nova tem uma promessa clara de crítica ambiental, mas é incapaz de cumpri-la por conta de um enredo remendado por conveniências e uma trama previsível, e muito disso se dá por conta das personagens e suas ações “questionáveis”. É quase cômico como personagens estão constantemente fazendo as piores decisões possíveis e sendo completamente incompetentes em suas ações. Isso parece exagero, mas é frustrante assistir duas crianças invadindo casas e até uma base militar sem qualquer obstáculo, nem uma câmera de segurança ou porta trancada, mas quando assistimos o núcleo dramático da detetive Clair (Hannah van Lunteren), ela está rodeada por homens armados, prontos para atirar em duas crianças que estão apenas com uma arma que paralisa os oponentes e um robô que não sabe fazer piadas.

Outro enorme incômodo são as personagens principais, sem qualquer desenvolvimento além de suas características básicas (Nova é a astronauta séria e Nas é o jovem rebelde o filme inteiro), tanto que até o antagonista principal, com apenas dez minutos de tela, tem um drama pessoal mais elaborado, envolvendo a relação com um pai abusivo. Sendo bem honesto, a personagem de Nas é a mais desnecessária do filme porque ele só segue Nova durante toda sua jornada, mas como ela já conhece a Terra e sabe com quem falar e onde ir, ele não serve sequer para introduzir algum elemento para ela ou o espectador, é apenas uma criança sem expressão. Tudo piora quando uma das revelações da trama envolve a relação de Nova com Nas, fazendo parecer que ele está no filme com um único propósito: servir de interesse amoroso para a versão adulta de Nova (o roteiro é previsível nesse nível).

Kika van de Vijver e Marouane Meftah em Capita Nova
Kika van de Vijver e Marouane Meftah

Algumas pessoas podem dizer que não posso ser tão rígido com a atuação de uma criança, mas algumas das melhores atuações da história do cinema vieram de papéis infantis (Spielberg basicamente fez sua carreira em cima disso), e Marouane Meftah esbanja uma falta de carisma inacreditável, tentando manter a mesma cara séria por mais de uma hora de duração do longa. Kika van de Vijver também não se salva da crítica porque tenta emular a seriedade da versão adulta de Nova, mas sem qualquer emoção, parece um cosplay do Juiz Dredd, mas sem capacete, ou graça alguma. Tudo bem, brincadeiras à parte, as atuações não estão inspiradas, e isso afeta personagens que também não são bem escritos.

Capitã Nova é uma produção independente com orçamento o suficiente para efeitos práticos decentes e uma direção de arte competente (mais em tomadas noturnas, porque as de dia não são tão boas assim), mas parece não ter se importado com o que realmente faz obras do tipo se destacarem, trazendo personagens fracos e um roteiro preguiçoso.

Capitã Nova (Captain Nova, 2021 – Países Baixos)

Direção de Maurice Trouwborst

Roteiro de Lotte Tabbers e Maurice Trouwborst

Atuações de Kika van de Vijver, Marouane Meftah, Anniek Pheifer, Joep Vermolen, Steef Cuijpers, Sander Van de Pavert

Duração: 1h 26min

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A FAMÍLIA MITCHELL E A REVOLTA DAS MÁQUINAS e o potencial das animações

É impressionante como o departamento de animações da Sony se renovou nos últimos anos, ou parece estar seguindo esse caminho. Depois do sucesso crítico de Homem-Aranha no Aranhaverso, que foi um filme INCRÍVEL, a próxima grande animação do estúdio é mais um projeto com a dupla Phil Lord e Christopher Miller.

Com uma mistura de comédia, road trip e ficção científica, “A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas” nos apresenta Katie Mitchell, uma jovem apaixonada por cinema, que está prestes a partir para a faculdade, e está bastante animada porque não aguenta mais se desentender com seu pai, Rick. Depois de uma briga, ele tenta se redimir com uma viagem de carro em família, o que irrita Katie, já que vai perder sua primeira semana na faculdade, mas eles acabam indo mesmo assim.

Todos finalmente começam a se divertir na viagem planejada pelo pai, mas a jornada é interrompida quando os robôs inteligentes da gigante corporação Pal se rebelam contra a humanidade, que foi quase completamente capturada. Os únicos sobreviventes são os Mitchell, que acabam sendo a única chance de derrotar as máquinas.

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Missão Planeta Terra (Spaceship Earth, 2021) | Ainda há chance para um futuro otimista?

Poucos projetos são tão ambiciosos quanto absurdos como Biosphere 2, uma empreitada comandada por um grupo de artistas engajados em desenvolver uma comunidade capaz de conscientizar as pessoas sobre os desastres ambientais do planeta, e para isso idealizaram uma redoma gigante que abrigava uma réplica do ecossistema terrestre. Em setembro de 1991, com a ajuda do investimento milionário de um herdeiro da indústria do petróleo, uma equipe de oito pessoas entrou na redoma, onde viveriam por dois anos, para poder testar a possibilidade do ser humano sobreviver no espaço. O que parecia a premissa de uma obra de ficção científica tornou-se um dos eventos mais comentados da década, principalmente com o envolvimento da imprensa, que além de observar cada passo da equipe, também começou a questionar suas intenções e o aspecto de culto em volta dos membros – a maior parte deles sem qualquer conhecimento científico – e seu líder carismático, John Allen.

O documentário, dirigido por Matt Wolf, conta com entrevistas de quase todos os envolvidos no projeto original e constrói uma linha temporal que apresenta, em sua maior parte de forma bem linear, o encontro desse grupo de artistas duas décadas antes do evento, quando ainda eram apenas hippies em moradia coletiva, até o dia em que seu grande projeto foi posto em ação. Por mais envolvente que seja a primeira metade do longa, onde conhecemos melhor cada membro do projeto, o que realmente chama a atenção do espectador são os obstáculos encontrados pela equipe assim que entram na Biosphere 2. O problema está na demora para o filme realmente abordar a proposta principal, que chega quase na metade da duração, e infelizmente não explora o suficiente do isolamento social, o que além de extremamente atual durante tempos de Covid-19, era facilmente a parte mais interessante de todo o documentário.

Fotografia com os oito integrantes do projeto Biosphere 2, que estão no documentario Missão Planeta Terra, disponivel na Netflix.

Algumas das filmagens de arquivo são muito boas, mostrando a equipe em sua rotina de trabalho, cuidando das plantações e animais, mas também seu momento de lazer, tentando cozinhar utilizando o mesmo alimento por dias. E as coisas se complicam quando diversos contratempos começam a surgir, então seria uma boa decisão se tivéssemos mais disso, mas sem comprometer o que foi introduzido anteriormente. Não é como se houvesse pouco conteúdo para ser explorado, já que apenas nos minutos finais o longa decide debater as consequências do projeto, que foi parar nas mãos de pessoas com uma intenção completamente diferente da originada pelo grupo, e isso já seria suficiente para mais uma hora de rodagem. Uma montagem mais dinâmica poderia ter ajudado no ritmo e na divisão da linha temporal, mas mesmo que seja uma oportunidade perdida, o que temos é o suficiente para compreender a missão de John Allen e seus seguidores.

Independente da estrutura, Missão Planeta Terra vai além de uma jornada previsível sobre um grupo de idealistas tentando mudar o mundo com sua atitude positiva e trabalho em equipe para ter seus sonhos despedaçados por ganância corporativa. O que Matt Wolf procura está na forma como nossas ambições se tornaram cada vez menores, e nosso pessimismo tem se tornado algo quase recorrente. Em certo ponto do documentário, um dos entrevistados diz não culpar a imprensa e seus questionamentos, isso porque logo temos uma figura que representa o verdadeiro antagonista do longa, e sua atitude é apenas um reflexo de porque temos menos empreitadas como essa. 

John Allen e sua equipe podem não ter sido as pessoas ideais para o projeto, mas o filme não tenta julgá-los ou os responsabilizar completamente por todos os problemas. Assim, ficamos com uma sensação quase melancólica de como somos rápidos em julgar tudo de forma cínica quando poderíamos contribuir para uma melhora significativa. É triste ver como nosso fascínio pela exploração espacial e o futuro da humanidade foram rapidamente tomados por um pessimismo tão grande, mas será que ainda há espaço para qualquer otimismo ou estamos apenas esperando pelo fim?

Pessoas observando os membros do projeto Biosphere 2 no documentario Missao Planeta Terra disponivel na Netflix

Esse pode ser um documentário simples e bem objetivo em sua proposta, mas ainda assim vale a pena a indicação por conta dos temas que consegue explorar e os entrevistados, que entregam alguns comentários relevantes sobre a situação, criando um paralelo com sua situação e os últimos anos tomados por uma pandemia, o que também afetou profundamente nossas vidas.

Missão Planeta Terra está disponível na Netflix

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Cinema

Nova Ordem Espacial (Seungriho, 2021) | Encontrando a humanidade nos destroços

No ano de 2092 o planeta Terra está morrendo cada vez mais rápido, tomado por toda a poluição e o caos de outros desastres, sejam eles naturais ou não. Uma grande corporação, conhecida pela sigla de UTS, consegue desenvolver uma colônia espacial habitável, mas ela não está disponível para todos. Assim, grande parte da população precisa descobrir uma maneira de sobreviver em plataformas e outros ambientes menos favoráveis, como a tripulação da Victory, uma nave coletora de lixo. Tentando sobreviver com o pouco que ganham em suas missões, Tae-Ho (Song Joong-Ki), a Capitã Jang (Kim Tae-ri), Tiger Park (Jin Seon-Kyu) e o robô Bubs (dublado por Yoo Hae-jin) encontram um enorme obstáculo quando acabam acidentalmente em posse de um andróide infantil perigoso, que tem poderes misteriosos e pode se transformar em uma arma de destruição em massa.

Em uma decisão desesperada para conseguir algum dinheiro, a tripulação da Victory aproveita o enorme interesse de todos na criança e se arrisca em um território dominado por criminosos do mercado negro, agentes do governo e até uma organização secreta conhecida por tomar medidas drásticas contra seus inimigos. Mas não é como se a equipe fosse tão amadora assim, isso porque Tae-Ho já serviu como comandante da Guarda Espacial, Park escapou da Terra e de uma sentença de morte por liderar um cartel de drogas e o robô Bubs largou suas atividades como militar para seguir seu sonho de uma pele orgânica. Mas dos quatro, a mais perigosa é Jang, que deixou de lado sua carreira como oficial do Pelotão das Forças Especiais para criar sua própria organização pirata e planejar o assassinato de James Sullivan (Richard Armitage), o presidente da UTS. 

Personagens e Elenco

Atores Jin Seon-Kyu, Yoo Hae-jin e Song Joong-Ki investigando uma nave perdida no filme Nova Ordem Espacial

A premissa de Nova Ordem Espacial (Seungriho, no original) tem diversos elementos interessantes, e por mais que a proposta também pareça um pouco derivada de outros filmes do gênero, ela acaba fazendo bastante sentido com o drama dos personagens, essa sim, a verdadeira força do enredo. Com um elenco carismático, cada membro da Victory possui uma característica básica muito bem estabelecida, então quando o longa precisa oscilar entre drama e comédia, tem um resultado bastante natural. Tae-ri e Seon-Kyu seguem a fórmula de capitã durona e brutamontes de grande coração, respectivamente, e por mais que Bubs renda algumas piadas engraçadas por conta de seu humor mais arrogante, é Joong-Ki quem fortalece o núcleo dramático do filme, com seu Tae-Ho que consegue ir de um líder cheio de lábia para um perdedor atrapalhado, mas quando o roteiro depende da subtrama de um passado traumático para a personagem, o ator aproveita cada momento de introspecção e catarse emocional.

Embora tenha acertado em cheio com seu elenco principal, que por vezes chega a lembrar um pouco a dinâmica entre os caçadores de recompensa do anime Cowboy Bebop (excelente obra, estou devendo um texto sobre ela), não é em todas que se ganha, e o filme está dividido em dois núcleos narrativos: o eixo espacial e o micro-universo da colônia da UTS, essa segunda sem metade do impacto de seu contraposto espacial. Por um lado foi uma decisão esperta colocar um elenco que realmente representasse algumas nações, como incluir atores norte-americanos ou latinos no papel de personagens da respectiva nacionalidade, mas ainda que tenham conseguido um ator competente como Richard Armitage (mais conhecido por interpretar Thorin na trilogia O Hobbit) para interpretar o principal antagonista, também há quase um desinteresse em desenvolvê-lo além do estereótipo de vilão com um claro complexo messiânico de salvar a humanidade na típica abordagem “os fins justificam os meios”. Com exceção de sua voz, não sobra muita coisa para o vilão usar como ferramenta de intimidação. 

Apesar de ter elogiado o núcleo espacial, seria injusto deixar de mencionar alguns tropeços nessa parte, mas eles são mais questão de oportunidades desperdiçadas do que problemas estruturais. Quando o longa decide se dedicar à novas subtramas (apenas mencionadas rapidamente através de diálogos anteriormente) na sua segunda metade de rodagem, há uma sensação de que outras tramas foram comprometidas, mas poderiam render bem mais do que o superficial. Foi um ponto alto do filme tentar criar um dilema na personagem de Tae-Ho, que precisa escolher entre um passado incerto e a possibilidade de uma redenção por conta de novas oportunidades, mas isso roubou um pouco do espaço que poderia ser dado para a subtrama do robô Bubs, que comenta a importância de sua operação para que finalmente possa ter a liberdade de assumir sua identidade de gênero por completo, interna e externamente. É um elemento pouco aproveitado do roteiro, que nos últimos minutos da obra perde um pouco do impacto já que passou grande parte do filme de lado para priorizar outras histórias. 

Efeitos visuais se destacam

A atriz Kim Tae-ri atuando como a capitã da nave Victory no filme Nova Ordem Espacial disponível na Netflix

Quando saímos um pouco do debate sobre as personagens, podemos focar um pouco na parte técnica. A direção fica por conta de Sung-hee Jo, e ele tem a chance de experimentar bastante com os efeitos especiais, o que ele faz nas tomadas de perseguição e batalha espacial, com direito a naves passando por enormes estruturas fazendo manobras impossíveis, mas bem criativas para uma sequência de ação. É esperado que um filme como esse tenha um ritmo dinâmico, e é o que acontece, mas também é preciso tomar cuidado para que essa necessidade por visuais impactantes não contribua para uma poluição visual desnecessária. Se por um lado é divertido assistir toda a ação no meio dos detritos espaciais, em alguns momentos o espectador pode ficar um pouco perdido na geografia da cena, sem saber quem é quem. Felizmente, isso acontece pouco. Mas quando se trata dos segmentos onde a ação exige um combate corpo a corpo, a câmera tremida e a montagem picotada não são o suficiente para esconder uma coreografia fraca. Em certo ponto, temos uma perseguição seguida por uma cena de ação com tantos cortes desnecessários que distraem ao ponto de incomodar. 

Nova Ordem Espacial é uma ficção científica que parece não ter muito para oferecer de início, mas logo conquista com efeitos especiais bem feitos e um elenco carismático ao ponto de fazer com que você esqueça o enredo batido. Produção coreana, esse filme me lembrou um pouco o recente Terra à Deriva, uma produção chinesa que também chamou bastante a atenção por conta de seu elenco e efeitos visuais, tanto que acabou se tornando uma das maiores bilheterias da história do país. Depois de sofrer um adiamento por conta da pandemia de COVID-19, com a adição de Nova Ordem Espacial no catálogo da Netflix, talvez esse filme ganhe mais atenção.

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O Céu da Meia-Noite (2020) | George Clooney retorna ao espaço (ou quase).

Com uma filmografia competente, George Clooney já provou há um bom tempo que não é apenas o rosto bonito que começou a chamar a atenção por sua participação na série E/R (no Brasil conhecido por Plantão Médico), criada por Michael Crichton, o mesmo responsável por Parque dos Dinossauros e O Enigma de Andrômeda. Clooney logo começou a pegar papéis mais desafiadores e se destacar em filmes como E Aí, Irmão, Cadê Você, o que o deixou cada vez mais famoso e interessado em dirigir seus próprios filmes. Admito não ser fã da maior parte de seu trabalho por trás da câmera, mesmo considerando Boa Noite e Boa Sorte um ótimo filme, e é por isso que quando soube do lançamento da ficção científica O Céu da Meia-Noite, fiquei interessado no que ele poderia fazer em um território no qual já atuou, mas nunca dirigiu.

Adaptação do livro Good Morning, Midnight, de Lilly Brooks-Dalton, O Céu da Meia-Noite é ambientado em um futuro pós apocalíptico, no qual parte da humanidade foi extinta por conta de um cataclismo misterioso. Enquanto todos planejam uma evacuação do planeta, o cientista Augustine (Clooney) decide ficar para trás e cuidar da base de pesquisa no Ártico, onde trabalha sozinho procurando por possíveis planetas habitáveis.

Sem saber dos eventos que acabaram de acontecer na Terra, a astronauta Sully (Felicity Jones) e sua tripulação estão retornando para casa depois de sua missão de exploração espacial, o que obriga Augustine a tentar avisá-los, mas para isso ele precisa enfrentar os riscos do Ártico, além de cuidar de uma criança deixada para trás durante a retirada do planeta. 

A atriz Felicity Jones no filme O Ceu da Meia Noite

Vamos tirar logo do caminho o que realmente funciona nessa obra, que é todo o apelo visual. Mais uma vez colaborando com Clooney na direção de arte está Martin Ruhe, com um bom olho para composição de algumas sequências de tensão bem arquitetadas, principalmente as tomadas espaciais, que podem evidenciar o CGI, mas há movimentos de câmera “impossíveis” que conseguem diminuir a sensação de estranhamento, exatamente por compreender que a melhor maneira de filmar uma cena inteira com uso pesado de efeitos visuais seria simplesmente trabalhá-la quase completamente na pós-produção.

Mas isso entra mais no departamento de efeitos visuais, que fez o trabalho mais consistente e sem exageros, apenas uma atenção maior para coisas como a textura do casco das naves, por exemplo. Isso pode parecer pouca coisa, mas faz uma enorme diferença em alguns filmes e evita tirar completamente o espectador da experiência.  

Ainda sobre a direção de arte, por mais bonita, essa também cai em um problema bem comum de filmes do gênero, que é uma fotografia quase monótona, com estruturas e um visual limpo demais, quase sem identidade. Parece algo contraditório, mas é uma pena ver filmes com a possibilidade de explorar visuais bem mais criativos por conta de sua premissa de ficção científica, mas não parecem ter a coragem de seguir isso até o fim – ou seja, visuais bem feitos de um ponto de vista técnico, mas sem uma personalidade capaz de dar uma voz única para o filme; o que não é uma obrigação, mas faz falta quando os visuais são o elemento de maior destaque da obra.

Quanto ao enredo de Martin L. Smith, imaginei que ele fosse trabalhar a premissa batida de O Céu da Meia-Noite com uma execução tão boa quanto a que fez em outros roteiros, como o do inventivo Operação Overlord. O conceito do cientista solitário em procura de humanidade e redenção, toda a ambientação pós apocalíptica de cataclismas ou astronautas explorando possíveis planetas para habitar são alguns dos elementos mais comuns do gênero, o que é totalmente válido aqui, mas se você não procura sair de uma estrutura formulaica, ficamos apenas com um filme previsível e a sensação de estarmos assistindo uma colagem de outras obras bem melhores que poderíamos estar vendo no lugar (Não gosto de fazer muitas comparações quando faço uma crítica, mas A Chegada, Ad Astra e o próprio Gravidade, onde Clooney atuou, são exemplos de filmes que abordam temas similares, porém com melhor atenção ao drama, essencial para narrativas como essa).

George Clooney estrela a FC Ceu da Meia Noite
George Clooney

Por falar no drama, há um sério problema de caracterização dos personagens, que mesmo mencionando e até mostrando pequenos vislumbres de suas vidas passadas, não conseguem carregar peso algum. Com exceção de Augustine, interpretado por um Clooney abatido, o resto dos personagens não parecem possuir algo além de características básicas e arquétipos, como “o pai que sente falta da família” ou “a jovem inexperiente”. Até mesmo Felicity Jones, que estava grávida durante as gravações e pôde adaptar isso em sua personagem, não recebe muito com o que trabalhar, e na maior parte da rodagem do filme parece apenas entediada e confusa.

Essa falta de personagens melhor definidos fica difícil de ignorar quando o terceiro ato decide se apoiar em um desenvolvimento mais emotivo, que ao invés disso, acaba soando melodramático. Também não ajuda o fato do longa dividir-se em dois núcleos dramáticos, que mesmo ligados de forma direta, não trazem paralelos capazes de fortalecer seus temas principais, o que cria um ritmo inconsistente enquanto alterna entre essas duas linhas narrativas. Como se não fosse o suficiente, quando o filme realmente procura uma conexão na esperança de entregar um final surpreendente e enternecedor, somos deixados com uma reviravolta tão previsível que seria mais inesperado se ela não existisse.

Talvez Clooney precise continuar assistindo mais alguns filmes do gênero como referência (desde que fique longe da versão norte-americana de Solaris, também estrelada por ele). O Céu da Meia-Noite busca uma abordagem introspectiva e tocante, mas o resultado acaba sendo uma experiência cansativa e uma ficção científica cheia de escolhas óbvias, que não procura fugir da fórmula, mas também não se esforça o suficiente para se destacar.

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Séries

The Midnight Gospel | Adeus aos Sentidos

“Amor! A única coisa que minha armadura não aguenta”

Clancy comanda um podcast espacial chamado The Midnight Gospel, onde entrevista seres diversos de planetas em extinção. Com um simulador de multiversos, ele pode enviar um avatar com a sua consciência para estes planetas e gravar longas conversas, que podem ir de um simples questionamento sobre a legalização da maconha até uma viagem através dos sentidos, com debates sobre ética existencial e identidade. Mas para entender de verdade a proposta dessa nova animação da Netflix, que leva o mesmo nome do podcast de Clancy, é necessário conhecer um pouco dos bastidores.

Todos os episódios de The Midnight Gospel, a série, tem como destaque os diálogos, as entrevistas de Clancy, que na verdade são excertos retirados diretamente de um podcast real, o Duncan Trussell Family Hour. Duncan Trussell é um ator, comediante e dublador que costuma receber todo tipo de convidado em seu programa: celebridades como Dan Harmon, o criador de Community e Rick and Morty; o músico e professor espiritual, David Nichtern; ou até mesmo figuras como Damien Echols, condenado por homicídio em um famoso caso dos Estados Unidos onde três garotos foram mortos no que foi confirmado como um “ritual satânico”. Um dos exemplos faz uma ponta na animação, mas vou deixar você descobrir enquanto assiste.

A série é desenvolvida por Pendleton Ward, mais conhecido como o criador da animação Hora de Aventura. Mas deu para notar que a abordagem de The Midnight Gospel é restrita ao público adulto, principalmente por conta de toda a profanidade e violência. Mesmo que Hora de Aventura tenha momentos brilhantes de questionamentos envolventes, a nova produção de Ward segue uma linha mais voltada para as crises existenciais de Bojack Horseman, com uma dose do absurdismo encontrado em Rick and Morty

Nova serie da Netflix a animacao The Midnight Gospel

Mesmo que a maior parte dos diálogos venha das conversas de Trussell e seus convidados, há uma narrativa própria na série. Assistimos às tentativas de Clancy em conhecer melhor seus vizinhos, conseguir novas amizades, colecionar artefatos de suas viagens e lidar com os defeitos de sua máquina, que precisa ser lubrificada constantemente (a semelhança de seu simulador de multiversos com um órgão sexual feminino faz parte da linguagem mais infantil e do humor escatológico de Ward, que se estende pela temporada representado em todo tipo de excremento que lhe vem à cabeça). Mas Clancy também tem alguns segredos e parece estar fugindo para novos mundos na intenção de esquecer o seu. 

Considerando o formato, há uma estrutura base para a maioria dos episódios, colocando as entrevistas em primeiro plano, com uma animação de fundo que nem sempre parece estar conectada ao assunto das conversas entre o protagonistas e os seres que encontra no caminho, mas rende alguma piada visual engraçada ou cria um segundo debate que parece complementar de certa maneira o tema geral de um episódio. Como se não fosse o suficiente, sobra espaço para alguns números musicais aleatórios, algo que Ward trouxe de seus outros trabalhos, mas falaremos disso em breve. Parece loucura resumir tudo dessa maneira, mas é uma daquelas coisas que só seria capaz de explicar desenhando, confirmando como a animação pode ser um recurso narrativo tão poderoso. 

E por falar em animação, se você estiver acostumado com os desenhos de traço mais infantil dos trabalhos anteriores de Ward, aqui temos algo similar, mas carregado de sangue e vísceras, o que não distrai demais da construção de mundo louca e cheia de referências e piadas do cenário. As cores também são mais vibrantes e garantem uma viagem psicodélica, inclusive por conta da movimentação, com menos fotogramas, que causa certo estranhamento em algumas sequências. Se ainda não ficou claro, até mesmo a data oficial de lançamento da série acabou caindo em 20 de abril (brincadeira entre os usuários de maconha, que usam o termo 4:20); então, você não está sendo guiado em uma jornada louca como essa sem motivo – o universo pode ser aleatório, mas as intenções de Ward e Trussell não.

A louca e experimental serie The Midnight Gospel da Netflix

Como mencionei antes, a temporada conta com ótimas músicas originais, um compilado de rock, metal, jazz e folk, com algumas letras bobas e ridículas, mas um pouco assustadoras se você prestar atenção no que algumas estão dizendo. Não temos nada no nível de Hora de Aventura, mas se quiser versões mais estranhas de Marilyn Manson, Tom Waits ou Beck, não vai se decepcionar. 

Embora pareça, na superfície, uma novelização de conversas descontraídas sobre temas delicados como a relevância das religiões, os riscos de se apoiar na esperança, as limitações da criatividade ou outros diversos questionamentos desse nível (é muito mais do que isso), a série se aproveita da jornada emocional do protagonista para executar momentos tocantes e explorar dúvidas essenciais para cada um de nós. Não se deixe enganar por elementos como barcos carregados pela energia positiva de gatos ou unicórnios que vomitam sorvete, The Midnight Gospel é uma experiência única através do espaço e da alma.