Em uma era de remakes e adaptações, uma obra original é sempre bem-vinda. Mrs. Davis”, nova minissérie original do streaming Peacock (o mesmo que tentou emplacar aquela adaptação de Admirável Mundo Novo), chegou sem fazer muito barulho, com uma proposta muito mais do que original e um tanto inusitada: que tal misturar religião cristã e ficção científica?
Tornando-se uma das adições para TV mais cativantes dos últimos meses, a série criada por Tara Hernandez (The Big Bang Theory) e Damon Lindelof (The Leftovers, Lost, Watchmen) tem conquistado o público. Estrelada por Betty Gilpin (Glow), que trabalhou com Lindelof em A Caçada (The Hunt, 2020), a minissérie Mrs. Davis aborda diversos assuntos, mas tentarei fazer um resumo muito breve da premissa.
Em um mundo comandado pela inteligência artificial denominada Mrs. Davis, a freira Simone (interpretada por Betty Gilpin), tenta viver desconectada em um convento afastado da modernidade, desfrutando de seu dom único: a capacidade de visitar Jesus Cristo (interpretado por Andy McQueen) em um restaurante no plano celestial. Simone culpa Mrs. Davis pela morte de seu pai, um famoso mágico, e tem uma relação pra lá de complicada com sua mãe, interpretada magnificamente por Elizabeth Marvel (Manifesto). Assim, Simone evita qualquer contato com a tecnologia que supostamente é a fonte de todas as suas dores.
No entanto, após várias tentativas frustradas, Davis alcança Simone e negocia sua autodestruição em troca de que ela embarque em uma missão para encontrar um objeto mítico, ao qual apenas ela poderia ter acesso. A partir daí, Simone precisa se juntar a um antigo conhecido, Wiley (interpretado por John McDorman), em uma missão cheia de absurdos, em que religião e ciência se misturam de forma super criativa.
A minissérie não tem medo de explorar alguns terrenos “polêmicos” enquanto faz comentários pertinentes, sem se limitar aos temas iniciais, trazendo arcos muito interessantes sobre a relação entre pais e filhos, o uso descontrolado das inteligências artificiais no nosso dia a dia e qual papel a religião ocupa no mundo moderno. Os primeiros episódios jogam o espectador nesse mundo sem muitas explicações, deixando para eles a tarefa de entender como as engrenagens da narrativa funcionam. Essa é uma das marcas de Lindelof, algo que fez com maestria em Watchmen e The Leftovers.
Outra peça fundamental de Mrs. Davis é a escolha do elenco, pela qual eu tenho que dar meus parabéns, são escolhas fantásticas. O grande destaque aqui realmente fica para Betty Gilpin, que não economiza em lágrimas e expressões, mas todo o elenco também está muito bem. Dando a impressão de que é apenas mais uma obra descompromissada, a minissérie tem momentos emotivos marcantes, principalmente quando se aproxima de sua reta final, como uma cena esplêndida no último episódio entre as personagens de Andy McQueen e Betty Gilpin. E ainda conta com a agradável aparição surpresa de Shohreh Aghdashloo, a eterna Chrisjen Avasarala de The Expanse, em um papel um tanto inesperado.
Divertida, irreverente e inteligente, Mrs. Davis é uma pérola e, com certeza, merece atenção. Planejada como uma série limitada, a obra se fecha satisfatoriamente em seu oitavo e último episódio. Infelizmente, a série ainda não conseguiu distribuição no Brasil, mas deve chegar em breve devido à boa repercussão dos episódios finais.
Mrs Davis (2023) – Minissérie Peacock, 8 Episódios de aprox. 40 – 50 Min. Criada por Tara Hernandez e Damon Lindelof Com Betty Gilpin, Jake McDorman, Andy McQueen, Chris Diamantopoulos, Katja Herbers, Elizabeth Marvel e outros.
Para qualquer leitor familiarizado com os textos de Philip K. Dick (ou PKD), não é surpresa encontrar uma narrativa que apresenta personagens transtornados e conceitos complexos ao explorar identidade e natureza humana, sem contar o tópico favorito do autor: questionar tanto a realidade do universo que cria em seus livros, quanto a do próprio leitor.
Responsável por diversas obras intrigantes que conseguiram estabelecer seu nome como um dos maiores expoentes do movimento new wave da ficção científica, caracterizado por uma abordagem mais experimental do gênero, Philip K. Dick também teve grande parte de suas obras adaptadas para o cinema, como aconteceu com Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, traduzido para a grande tela por Ridley Scott no clássico Blade Runner (1982). Entre a lista de leituras essenciais do autor, como Ubikou Fluam, minhas lágrimas, disse o policial, costumo dizer que O Homem do Castelo Alto é a sua obra mais completa. As distopias sempre foram reconhecidas na ficção científica como uma ferramenta de crítica social e política, mas nem todas sabem aproveitar a premissa ou desenvolver o enredo tão bem quanto O Homem do Castelo Alto.
A obra examina uma realidade alternativa da história, na qual os países do eixo conseguem derrotar os “aliados” na Segunda Guerra Mundial, fazendo com que o Japão e uma Alemanha nazista tornem-se as maiores potências mundiais, enquanto outras nações sejam destruídas, outras dividias, como acontece com os Estados Unidos. Assim, seguimos o drama de personagens completamente diferentes, tentando sobreviver em um mundo instável, como o inseguro Robert Childan, um antiquário de peças americanas para colecionadores; o operário judeu, Frank Frink, que tenta esconder sua origem; Nobosuke Tagomi, um burocrata lidando com delicadas relações políticas; e Juliana Frink, ex-esposa de Frank, e instrutora de judô, que fica obcecada por um livro proibido que fala sobre um universo alternativo no qual os nazistas perderam e a guerra foi vencida pelos “aliados”.
Um mundo psicótico, este em que vivemos. Os loucos estão no poder. Há quanto tempo sabemos disso?
Por mais que hoje a proposta pareça óbvia, e sequer foi a primeira vez que narrativas envolvendo realidades distópicas pós-guerra foram feitas, o diferencial de O Homem no Castelo Alto está na abordagem de Philip K. Dick, provavelmente o autor que passou mais tempo explorando a concepção de realidade do que qualquer outro. Por esse motivo, a sua construção de mundo envolve um tremendo exercício de imaginação, mas também, uma dedicação em manter um pé na nossa realidade (ou o que se passa por ela) para explorar um efeito borboleta de eventos que coincidem na vitória do eixo. Mas antes de mencioná-los, é necessário descermos ainda mais na toca do coelho e explorar a metalinguagem da obra.
Considere isso: você, leitor, está com O Homem do Castelo Alto, escrito por Philip K. Dick em mãos. No universo apresentado nos parágrafos anteriores, os personagens entram em contato com um livro, escrito por um homem chamado Hawthorne Abendsen, intitulado “O Gafanhoto Torna-se Pesado”, que explora uma realidade na qual o eixo na verdade perdeu a guerra. Essa é a primeira camada da metanarrativa de PKD, que não acaba por aí, já que a possível realidade do texto fictício (difícil usar palavras como essa nessa resenha com firmeza) de Abendsen revela um mundo similar ao nosso, mas não o mesmo, já que nesse uma grande guerra envolve Estados Unidos e Inglaterra. Ou seja, temos uma realidade em cima de outra, em cima de outra. Tendo isso em mente, podemos seguir em frente.
No livro dentro do livro, um dos principais acontecimentos responsáveis pela vitória dos nazistas está na morte do presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, circunstância que manteria o país na crise da Grande Depressão, o enfraquecendo no futuro. É esse tipo de atenção aos detalhes e criatividade que faz o texto de PKD um experimento tão consistente, sem contar que, mesmo inserindo tanta informação, temos um enredo limpo e objetivo, e isso considerando o fato do universo da obra também introduzir elementos como exploração espacial, o que fica apenas em segundo plano e serve mais como parte da construção de mundo, mas surpreendentemente combina perfeitamente com a proposta de expansão dos países vitoriosos do eixo, que decidiram também dominar o espaço.
Enquanto os alemães estavam ocupados em lançar no espaço enormes sistemas robotizados, os japoneses queimavam as florestas do interior do Brasil, erguendo edifícios de apartamentos de oito andares, de barro, para ex-caçadores de cabeças. Até os japoneses lançarem seu primeiro foguete, os alemães tinham posto o sistema solar no bolso. P.19
Mas há outra obra literária de enorme importância dentro da narrativa, assim como para o próprio autor. Em O Homem do Castelo Alto, a maior parte da população tem o costume de consultar o I Ching, o Livro das Mutações, uma obra que ajudou a popularizar parte da filosofia chinesa para o resto do mundo, atuando como um oráculo, ou apenas apresentando textos de sabedoria. Ao contrário de “O Gafanhoto Torna-se Pesado”, o I Ching não existe apenas na realidade dos personagens de O Homem do Castelo Alto, mas na nossa, e Philip K. Dick o utilizou constantemente no desenvolvimento de seu livro. Esses detalhes enriquecem a construção de mundo, introduzindo detalhes sobre suas esferas sociais e políticas, mas ao mesmo tempo, essa não é uma leitura complexa. O autor consegue uma narrativa limpa e clara, ainda que insira bastante informação em apenas uma página. O livro não promete reviravoltas explosivas na trama, mas não deixa de trazer surpresas, e a maior parte do conflito é desenvolvido em cima da tensão entre países e núcleos dramáticos específicos.
São vários personagens, alguns se encontram, outros não, e pode ser necessário uma atenção extra para lembrar todos os nomes, já que alguns personagens possuem mais de um, mas é uma preocupação que pode ser deixada de lado rapidamente porque, assim que as subtramas começam a convergir, tudo passa a ficar mais claro. Aqui temos, provavelmente, o livro em que o autor melhor aproveita suas personagens. É comum que autores de ficção científica prezem por uma narrativa com um foco maior na trama, principalmente para destacar os elementos do gênero em suas histórias, e Philip K. Dick entra nessa categoria diversas vezes. Talvez por esse motivo O Homem do Castelo Alto tenha se tornado, para muitos, a obra máxima do autor, a que melhor utilizou o enredo em função das personagens, construindo ótimos diálogos e fortalecendo suas interações com o universo alternativo.
Além disso, mesmo sendo um grande fã do autor, sempre critiquei a forma que ele deixa as mulheres em segundo plano no seu texto, atuando como coadjuvantes, quando sequer possuem essa função (esse foi outro problema da ficção científica por anos), mas aqui temos Juliana Frink, uma das melhores personagens de sua biblioteca, uma mulher forte e inteligente que passa a ser uma peça essencial para os momentos finais do livro – e que final espetacular, mas não vou mencioná-lo aqui para evitar estragar alguma coisa. Quanto aos temas da obra, ela não se limita aos debates sobre realidade, mas ao que conhecemos como a verdade.
Pegando emprestado conceitos da filosofia chinesa, o livro está constantemente nos fazendo pensar o conceito de historicidade, ou seja, no valor histórico de algo. No livro, temos as peças de Childan, que são importantes apenas por conta da história que contam, principalmente os artefatos vindos dos EUA, já que o país foi tomado pelos nazistas e sua cultura só possui qualquer valor por conta disso (o que rende uma das revelações mais engraçadas do livro, envolvendo um relógio com uma ilustração de Mickey Mouse). O contraste inteligente feito pelo autor está no fato de estarmos debatendo o que é real ou não enquanto Childan percebe que parte de suas peças são falsificadas.
A verdade é tão terrível quanto a morte, apenas mais difícil de encontrar.
Philip K Dick nunca deixa de brincar com nossas certezas e arrancar o leitor da zona de conforto à força, o que faz em certo ponto quando chega a jogar uma de suas personagens em outra realidade (talvez a nossa, mais uma camada de metanarrativa), apenas para que tenha um vislumbre das possibilidades. Inclusive, o autor arranja espaço para debater a própria ficção científica e as experimentações que oferece. Tudo acontece em apenas uma página, através de um diálogo, mas dá para notar como PKD defende o gênero (aprende, Margaret Atwood).
O Homem do Castelo Alto é um livro relativamente pequeno (considerando a quantidade de informação que o autor introduz em cada página), mas com um universo e personagens fortes o suficiente para torná-lo uma das obras mais estudadas de Philip K Dick. Por conta do formato e estrutura narrativa, esse acaba sendo o trabalho mais distintos da biblioteca do autor, um que sempre quis nos lembrar como é frágil nossa realidade, isso porque ele foi o único capaz de estar em todas ao mesmo tempo.
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