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River | (Mais) dois minutos além do infinito

Em 2020 tivemos o lançamento de Dois minutos além do infinito, uma pérola da ficção científica independente que chamou atenção em festivais e depois conseguiu uma visibilidade maior no Brasil quando chegou no catálogo do streaming Max (finada HBO Max). Primeiro longa do diretor Junta Yamaguchi, o filme conta a história de um grupo de amigos tentando entender como uma TV passou a exibir imagens do futuro, especificamente dos próximos dois minutos. É uma obra de apenas uma hora e dez minutos, mas bem esperta no formato, brincando com a câmera que está constantemente flutuando no ambiente como o ponto de vista do espectador confuso que vai descobrindo as informações junto das personagens, e -quase- tudo realizado em plano sequência, um chamariz que geralmente não me impressiona, mas nesse filme se destaca por conta da complexidade da cadeia de eventos, então filmar um filme de anomalia temporal em um formato que ignora as convenções da edição cinematográfica é algo bem criativo.

Para seu segundo filme, Yamaguchi mantém a temática de viagem no tempo, repetindo alguns elementos para criar um tipo de conexão entre as obras. Enquanto Dois minutos além do infinito se passa no pequeno restaurante do protagonista, River (lançado em 2023, mas ainda sem título ou data de lançamento no Brasil) é ambientado numa típica pousada ryokan chamada Fujiya, em Kyoto. Assistimos a atendente Mikoto (Riko Fujitani) interagindo com os seus colegas de trabalho e hóspedes do hotel; tudo parece um dia normal, porém ela tem a sensação de um déjà vu quando se vê repetindo uma mesma conversa com seu patrão.

River novo filme do diretor de dois minutos além do infinito
Munenori Nagano e Riko Fujitani debatem sobre os eventos temporais da pousada

Logo o que era estranho fica pior quando Mikoto se vê constantemente voltando dois minutos no passado, a partir do mesmo ponto, na frente do rio Kibune, paralelo ao estabelecimento. Para piorar a situação, outros funcionários e hóspedes passam a relatar eventos bizarros, como uma bebida quente que nunca atinge a temperatura certa ou um mingau que não termina mesmo que você coma o prato inteiro. Todos estão presos no mesmo loop temporal, e a cada dois minutos o tempo volta para o mesmo ponto de partida, felizmente com suas memórias intactas, sendo essa a única vantagem que as pessoas têm para bolar um plano e sair dessa prisão temporal.

Yamaguchi estrutura o longa de uma forma similar ao seu filme anterior, dessa vez tendo um ambiente diferente e mais exploração do espaço, que além de maior em escala é bem mais complexo por conta da quantidade de escadas, corredores e cômodos nos quais a câmera precisa transitar para estabelecer a posição de cada personagem dentro do loop temporal. O que ajuda bastante é a evolução das ferramentas do diretor, que fez o filme anterior em seu smartphone, mas aqui ele tem uma câmera digital e um orçamento maior, então há mais possibilidades e um trabalho melhor no tratamento visual, ainda que o tratamento de cores não seja perfeito e em alguns momentos o branco fica mais estourado, mas é coisa pequena considerando que o foco do longa está nessa noção de movimento.

Por conta da natureza da narrativa de loop temporal o filme consegue escapar até de possíveis erros de continuidade, principalmente aqueles envolvendo a neve em volta da pousada, que está sempre mudando de forma, mas com cada nova instância de linha temporal reiniciada o clima é tratado como uma personagem na trama principal. Por falar nisso, enquanto o primeiro longa do diretor estava mais focado na cadeia de eventos, sem muito desenvolvimento das personagens, aqui temos personagens com dramas mais claros e melhor desenvolvidos, principalmente o da protagonista, Mikoto, que está em sua própria batalha interna contra o tempo e sua inevitabilidade. Além da atriz Riko Fujitani, quase todo o elenco de Dois minutos além do infinito retorna para River, como Gôta Ishida, Masashi Suwa e Munenori Nagano.

Gôta Ishida e Masashi Suwa surpresos com a comida que nunca acaba

O filme é quase inteiramente formado por planos sequências que se limitam à regra de dois minutos, assim retornando para o ponto inicial com um corte seco. O mais divertido é assistir as personagens passando pelos mesmos eventos ou procurando maneiras diferentes de alterar sua realidade. O mais impressionante é ver como Yamaguchi consegue cronometrar a duração das tomadas com a distribuição das personagens no cenário e o enquadramento da câmera. Se você já assistiu o filme anterior do diretor, em alguns momentos é esperado que sinta como se estivesse assistindo uma versão em maior escala da mesma história, muito mais por conta das batidas da trama do que a história em si, o que não atrapalha e até cria uma conexão temática entre as obras – talvez indício de que teremos mais um filme pra formar a trilogia de anomalia temporal?

Se Dois minutos além do infinito revelou Junta Yamaguchi como um nome para se prestar atenção quando falamos de narrativas de ficção científica envolvendo viagem temporal, em River ele consegue se superar na escala e construção de suas personagens, com mais um filme divertido e criativo sobre a iminência do tempo e a importância da memória.

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O Hotel do Alpinista Morto | O único SCIFI da Estônia (Vídeo)

Os irmãos Strugatsky são uma dupla de autores soviéticos que podem não ser tão populares na ficção científica quanto um Asimov ou Philip K Dick, mas tem grande influência no gênero, não só pela narrativa de seus livros, mas pelas adaptações que eles já renderam pra TV e cinema. Talvez a obra mais conhecida deles seja a novela Piquenique na Estrada, que se transformou no filme Stalker, um clássico do diretor Andrei Tarkovski. Outras traduções pro cinema que se destacam são filmes como Os Dias de Eclipse, que foi dirigido pelo Aleksandr Sokurov e traz muita experimentação dele, também tivemos a distopia É Difícil ser um Deus, que chegou a ser adaptado mais de uma vez. Todos possuem algum elemento de ficção científica, seja alteração da realidade por um acidente espacial, ou um mundo que os alienígenas invadiram, mas logo abandonaram. Já o longa Hotel do Alpinista Morto é uma obra que traz, além do scifi, o mistério de uma narrativa investigativa, com uma atmosfera absurda e única que pode agradar qualquer fã de Twin Peaks ou Arquivo X.

O cinema da União Soviética era gigante, a maioria vindo do lado russo, mas pouco se fala sobre as produções que saíram da Estônia, ainda mais quando prestamos atenção na ficção científica. A maioria dos filmes do gênero eram curtas, e por isso Hotel do Alpinista Morto se destaca como – provavelmente – o único longa de ficção científica do país. Mesmo sendo único, o filme consegue ser uma obra-prima que compensa essa ausência e representa muito bem o potencial do cinema soviético, e por isso virou um clássico do leste europeu.

Como já mencionei, o filme é baseado em uma obra homônima da dupla Arkady e Boris Strugatsky, mas ao contrário de outros livros mais populares deles, que eram mais voltados pra ficção científica filosófica e introspectiva, Hotel do Alpinista Morto carrega um mistério mais voltado para o thriller policial, ainda que continue sendo, em essência, um scifi mais cabeça.

Hotel do Alpinista Morto Filme SciFi Ficção Científica

A trama acompanha o oficial Glebsky, que parte em uma missão urgente envolvendo um resort isolado entre montanhas congeladas chamado hotel do alpinista morto, que levou esse nome exatamente por conta de um acidente com um aventureiro que morreu ao cair de um penhasco, uma memória sempre presente por conta do enorme quadro na entrada do hotel, representando o homem morto. Quando chega no local, o oficial percebe eventos e pessoas estranhas, mas não faz ideia de qual crime deve solucionar. Antes que pudesse ir embora e desistir do caso, Glebsky fica preso no local por conta de uma avalanche que corta as conexões do lugar com o resto do mundo, e é nesse cenário que a investigação começa de verdade, quando vítimas surgem e eventos misteriosos passam a acontecer, fazendo com que todos os hospedes virem suspeitos.

E você pode estar se perguntando onde entra a ficção científica nisso tudo!?

Parte da surpresa do filme envolve exatamente o elemento scifi, o que pode dar uma dica do que está por vir. Costumo evitar entregar spoilers muito grandes da trama, a não ser que seja necessário. Aqui é difícil estragar a experiência revelando detalhes da história porque esse filme é muito mais sobre a própria jornada do que a conclusão. Ainda assim, ele tem uma baita conclusão, do tipo que deixa uma certa ambiguidade em elementos estabelecidos no começo, mas deixa outros aspectos bem claros para o espectador, incluindo uma cena de quebra da quarta parede que explica muita coisa e deixa ainda mais interessante essa experimentação do diretor.

Então, o filme tecnicamente entrega muito do que está por vir logo no começo, e foi uma boa decisão, porque com certeza muita gente poderia assistir esse filme e chegar na parte que ele abraça total a ficção científica e dizer algo do tipo: “Nossa, mas isso veio do nada”. Felizmente, isso é bem executado e quando o grande mistério é revelado, já não parece mais tão aleatório introduzir conceitos mais inesperados.

Hotel do Alpinista Morto Filme SciFi Ficção Científica

Enquanto Stalker é dirigido por Tarkovsky e se apoia mais em um debate existencialista, aqui temos a direção de Grigori Kromanov, e ele procura uma abordagem com comentários mais voltados para questões sociais e políticas. Claro que os dois filmes têm uma mistura de tudo isso, mas o diferencial do filme de Kromanov é a mescla de gêneros, experimentação na técnica e o excelente trabalho de fotografia, figurino e som.

O longa carrega muito da estética que viria a ser mais popular nos anos 80, principalmente no figurino e cenário, com cores contrastantes e aquela pegada psicodélica que deixa tudo mais bizarro, em combinação com a fotografia obscura do hotel, com muitas sombras e o uso de espelhos pra criar mais confusão nessa atmosfera misteriosa – uma técnica que vimos ser bastante utilizada em outra indicação aqui do canal, o pouco conhecido, mas bastante influente, Mundo Por um Fio.

Tão importante quanto o trabalho de direção de arte é a música. A trilha sonora de Sven Grünberg também tem bastante presença, carregada de sintetizadores que lembram algo no nível das melhores bandas de música eletrônica, sem contar um pouco das composição que bandas como a Goblin fez para os filmes do Dario Argento.

Grande parte da magia desse filme está nessa parte técnica, como a edição fragmentada de algumas sequencias que deixa uma montagem mais confusa, com a intenção de enganar o espectador e fazer você se perguntar sobre o que acabou de ver. Por isso esse é o tipo de longa que vale a pena assistir mais de uma vez, mas não só pela estética, também por todos os temas que ele levanta, principalmente considerando o período em que foi lançado, mesmo que a ambientação também seja um pequeno mistério. Através do protagonista temos muitos debates sobre as contradições da justiça e os limites da lei, com um personagem que acredita estar fazendo o certo em seguir as regras, mas não avalia suas próprias questões morais sobre os eventos bizarros do hotel.

Esse pode ser uma das poucas referências do cinema de gênero da Estônia, mas consegue ser um clássico da ficção científica, que pode ser um pouco difícil de encontrar pra assistir, mas é uma experiência que merece imersão total e uma tela grande com a direção de arte belíssima e o som estalando com a trilha do Grünberg no talo. Uma inesquecível pérola scifi que não pode ser ignorada.


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MEN: Faces do Medo | Não é fácil escapar de relacionamentos abusivos

Alex Garland é um diretor que tenho seguido o trabalho há muito tempo, desde que ele escrevia roteiros para os filmes de Danny Boyle, com os ótimos Extermínio (2002) e Sunshine – Alerta Solar (2007). Depois, também foi responsável por uma das adaptações mais fiéis dos quadrinhos, quando fez o texto para Dredd: O Juíz do Apocalipse (2012), e fez sua estréia como diretor em 2014, com Ex_Machina, um filme de pequena escala e orçamento modesto, mas com grandes atuações e roteiro de Garland, um escritor que sabe explorar os elementos de ficção científica dentro da narrativa como poucos – sem contar que o longa tem a cena do Oscar Isaac dançando ao som de Oliver Cheatham, o que automaticamente faz com que qualquer filme seja um pouco melhor.

Por ter trabalhado quase sempre com ficção científica, seguindo Ex_Machina com Aniquilação (2018) e a série DEVS (2020), alguns já esperavam que seu próximo filme fosse outra obra do gênero; o que até faz parte, mas de fato está mais voltado para o suspense. Men: Faces do Medo (típico subtítulo desnecessário, vai entender) está mais voltado para o thriller psicológico, um estudo de personagem com temas sobre masculinidade tóxica e violência, mas principalmente é uma narrativa sobre relacionamentos abusivos.

Jessie Buckley em Men Faces do Medo
Jessie Buckley

Harper (Jessie Buckley) sai do centro de Londres para se isolar em um chalé e lidar com o trauma de ter perdido seu marido. Procurando superar o luto, enfrenta emoções conflitantes por conta das memórias de uma relação violenta e tóxica, ao mesmo tempo que sente certa responsabilidade e culpa pelos eventos. Ao caminhar no campo e explorar o ambiente, Harper percebe que está sendo observada, logo surgem figuras misteriosas e o mesmo rosto passa a persegui-la. Em uma trama tensa, Men é o típico thriller psicológico da produtora A24, o que dependendo da pessoa pode ser algo bom, entretanto nem sempre é o caso.

Queridinha do público interessado em um cinema mais “cult”, a A24 é uma boa produtora, com alguns dos meus filmes favoritos, como Sob a Pele (2014) e Bom Comportamento (2017), e onde Garland trabalhou antes, mas ela também tem seus tropeços; não podemos esquecer Tusk: A Transformação. E há uma certa síndrome A24 que nem todos querem admitir, mas não dá pra negar que mais de uma vez por ano temos algum filme com premissa intrigante, bom elenco e um diretor competente, geralmente em um thriller psicológico (não vamos debater pós-horror aqui, tá proibido), mas que escondem um enredo repetitivo ou sem muito desenvolvimento em diversas camadas de metáforas e alegorias. 

Antes de tudo, deve-se levar em consideração que, obviamente, essa é uma opinião pessoal, como toda crítica é; e cada obra de arte atinge as pessoas de maneiras diferentes, essa é a graça, e por isso debatê-las é tão enriquecedor e causa emoções fortes. O segundo comentário que preciso evidenciar aqui é o fato de que narrativas com temáticas pertinentes como as de Men são sempre bem-vindas, entretanto elas são somente uma parte de um todo, e não fazem do filme algo melhor por conta exclusiva disso – apenas números de dança fazem isso.

Men Faces do Medo

De início, Men se utiliza de uma ambiguidade na trama para criar uma experiência sensorial bem construída, com a tensão e paranoia dos eventos que perturbam a protagonista, e nos faz questionar a realidade de Harper e daquele mundo. Contudo, logo vem meu maior problema com o filme, a forma como ele tenta objetivar vários aspectos da história, explicando pontos que seriam melhor deixados em dúvida, tanto que logo quando a proposta do longa fica clara, e isso acontece mais cedo do que você imagina, ele perde grande parte do seu apelo, que antes se apresentava com um tom e atmosfera sustentada por essa incerteza na trama.

Esse é o típico filme com um debate promissor e vários temas que podem render um estudo de personagem complexo e significativo, explorando violência doméstica, perpetuação da masculinidade tóxica, abuso psicológico e outros assuntos que em um roteiro melhor trabalhado seriam examinados com cuidado e seriedade. Infelizmente, Garland parece estar interessado em falar de tudo isso, mas não consegue se aprofundar em nenhum desses temas com propriedade por conta de sua responsabilidade maior com viradas na trama, principalmente todo o terceiro ato, que se debruça em horror corporal acreditando que sua crítica é suficiente para sustentar um enredo pouco desenvolvido, tanto que o filme tem ao seu dispor dois atores excelentes, Jessie Buckley e Rory Kinnear, mas nenhum arco dramático ou “evolução” parece existir nas personagens, tendo o talento dos atores como a única coisa que sustenta a maior parte da obra.

Jessie Buckley e Rory Kinnear em Men Faces do Medo
Jessie Buckley e Rory Kinnear

Men tem seu auge na ambientação, trabalho de som, direção de arte, atmosfera tensa com segmentos oníricos e atuações de Jessie Buckley e Rory Kinnear. Esses elementos fazem com que o longa tenha um começo forte, mas logo muito disso se perde por conta de um enredo sem foco, o que é uma pena vindo de alguém como Alex Garland. Ainda assim, continuo ansioso por qualquer um de seus próximos projetos.

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After Blue (Paradis Sale), Dogma 95 e o Manifesto da Incoerência

“Ser incoerente significa ter fé no cinema, ter uma abordagem mais romântica, sem moldes, livre, perturbadora e onírica, uma narração épica. Incoerência que evidencia uma falta de cinismo, mas não de ironia, abraçando o gênero sem penetrá-lo”.

Sempre estou à procura de todo tipo de ficção científica possível, principalmente quando tem uma proposta tão criativa e experimental quanto a de After Blue, uma jornada de faroeste psicodélico com um enredo sem muito brilho, mas um ótimo chamariz visual e bastante charme. A premissa é bizarra, mas fácil de entender. Distante da Terra, provavelmente depois de sua destruição, temos um planeta alienígena distópico que serve de colônia apenas para os humanos “dotados de ovários” (quem não possuir um, morre logo após o parto). É nesse cenário que conhecemos a criminosa Katarzyna Buzowska (Agata Buzek), mais conhecida como Kate Bush (sem relação direta com a cantora), enterrada em um deserto rosa pela polícia espacial, até que um dia é libertada pela jovem e confusa Roxy (Paula Luna). Como punição, Roxy e sua mãe, Zora (Elina Löwensohn), recebem a ordem para caçar e exterminar Bush, para evitar que a criminosa cause ainda mais destruição no planeta After Blue.

O filme foi distribuído na mesma semana que a música Running Up That Hill estourou por conta da quarta temporada de Stranger Things, e talvez por conta disso ele tenha recebido certa atenção de algumas pessoas; sem contar que o diretor do longa, o francês Bertrand Mandico, não é um estreante. Seu primeiro longa, Os Garotos Selvagens, esteve no topo da lista de favoritos da revista Cahiers du Cinema em 2018. After Blue é mais um exemplo do seu cinema experimental, principalmente um apelo estético que se destaca pela forma como reproduz o visual de obras independentes (até trash) de ficção científica entre as décadas de 1970 e 80, com cenários claramente artificiais, atuações mais caricatas e efeitos de câmera com filtro carregado.

Paula Luna no filme After Blue

Essas são algumas das características propostas pelo Manifesto da Incoerência (Incoherence Manifesto), idealizado por Mandico, ao lado da diretora e produtora Katrín Ólafsdóttir. Quando você dá uma olhada nas regras, fica fácil lembrar do conhecido Dogma 95, estabelecido por Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, mas a ideia de Mandico-Ólafsdóttir traz alguns conceitos bem interessantes que os diferencia da dupla dinamarquesa, mesmo que algumas categorias realmente sejam um comentário em cima do Dogma 95. Há mudanças no roteiro, efeitos, geografia, direção de arte e até atuação. 

Para o Manifesto da Incoerência deve-se ignorar qualquer convenção cinematográfica de roteiro, os efeitos precisam ser práticos, as gravações devem ser feitas em película que “passou da validade” (elas ainda funcionam normalmente, mas trazem um resultado diferente) e a maior parte do trabalho de som é feito apenas na pós-produção. Se por um lado o Dogma 95 propõe que as obras não devem se encaixar em qualquer gênero específico, o Manifesto da Incoerência dita que todo filme deve ser um híbrido entre, pelo menos, dois gêneros (After Blue mescla ficção científica, fantasia e faroeste). Quanto à autoria, Dogma afirma que o diretor não deve ser creditado, enquanto Incoerência determina que o diretor é o autor máximo, comandando câmera e direção de arte.

Paula Luna e Elina Löwensohn no filme After Blue

After Blue procura se manter fiel à proposta, pelo menos em sua maior parte, e acredito que o filme fique mais envolvente se o espectador for assisti-lo tendo antes em mente todo o conceito do manifesto de Mandico-Ólafsdóttir, o que cria uma conexão maior com a obra e faz de tudo uma experiência mais completa. Contudo, isso também atua contra o longa, que não parece oferecer algo além de uma ideia muito bem elaborada, mas de execução frágil. Enquanto o mundo de After Blue é rico em elementos visuais peculiares e nos transporte com facilidade à um planeta cheio de fauna e flora surreal, figurinos, cenário e explosão de cores e saturação que fortalecem a ambientação onírica, ao mesmo tempo eles não compensam uma narrativa repetitiva, com personagens sem muita carisma e um enredo previsível.

É claro que muito disso pode tentar ser justificado no argumento de que “o diretor propõe acabar com qualquer convenção de roteiro”, como eu mesmo disse nesse texto, mas se o resultado para uma tentativa de quebrar com as regras for uma história tediosa, que consegue explorar todos os seus temas na primeira hora e depois segue se arrastando desnecessariamente para mais uma hora, então talvez seja melhor se “manter ao roteiro”.

Não faltam temas fascinantes para explorar no mundo misterioso e erótico de Mandico, mas com tudo que o filme poderia ter dito, chega um ponto em que o enredo repetitivo afeta o ritmo e faz com que até o visual torne-se repetitivo, e assistimos a protagonista vagar em mais um deserto, floresta ou caverna, dizendo nada de novo. After Blue é original e se apresenta muito bem, sendo facilmente um dos destaques do ano, mas fica difícil não pensar em como ele teve mais sucesso na promessa do que na execução.

Agata Buzek como Kate Bush no filme After Blue