Não existe uma pessoa que não tenha pelo menos ouvido falar em Breaking Bad. É um fenômeno da TV, sucesso em streaming e continua conquistando novos fãs. Breaking Bad é um marco cultural, isso não tem como negar. Mas eu queria lembrar vocês de outra série essencial para a história da TV, e que tem mais a ver com Breaking Bad do que alguns imaginam. Talvez, ao lado de Twin Peaks, essa seja a série que melhor definiu os anos 90, e como você já sabe desde o título desse vídeo, estou falando de Arquivo X.
Em uma era de remakes e adaptações, uma obra original é sempre bem-vinda. Mrs. Davis”, nova minissérie original do streaming Peacock (o mesmo que tentou emplacar aquela adaptação de Admirável Mundo Novo), chegou sem fazer muito barulho, com uma proposta muito mais do que original e um tanto inusitada: que tal misturar religião cristã e ficção científica?
Tornando-se uma das adições para TV mais cativantes dos últimos meses, a série criada por Tara Hernandez (The Big Bang Theory) e Damon Lindelof (The Leftovers, Lost, Watchmen) tem conquistado o público. Estrelada por Betty Gilpin (Glow), que trabalhou com Lindelof em A Caçada (The Hunt, 2020), a minissérie Mrs. Davis aborda diversos assuntos, mas tentarei fazer um resumo muito breve da premissa.
Em um mundo comandado pela inteligência artificial denominada Mrs. Davis, a freira Simone (interpretada por Betty Gilpin), tenta viver desconectada em um convento afastado da modernidade, desfrutando de seu dom único: a capacidade de visitar Jesus Cristo (interpretado por Andy McQueen) em um restaurante no plano celestial. Simone culpa Mrs. Davis pela morte de seu pai, um famoso mágico, e tem uma relação pra lá de complicada com sua mãe, interpretada magnificamente por Elizabeth Marvel (Manifesto). Assim, Simone evita qualquer contato com a tecnologia que supostamente é a fonte de todas as suas dores.
No entanto, após várias tentativas frustradas, Davis alcança Simone e negocia sua autodestruição em troca de que ela embarque em uma missão para encontrar um objeto mítico, ao qual apenas ela poderia ter acesso. A partir daí, Simone precisa se juntar a um antigo conhecido, Wiley (interpretado por John McDorman), em uma missão cheia de absurdos, em que religião e ciência se misturam de forma super criativa.
A minissérie não tem medo de explorar alguns terrenos “polêmicos” enquanto faz comentários pertinentes, sem se limitar aos temas iniciais, trazendo arcos muito interessantes sobre a relação entre pais e filhos, o uso descontrolado das inteligências artificiais no nosso dia a dia e qual papel a religião ocupa no mundo moderno. Os primeiros episódios jogam o espectador nesse mundo sem muitas explicações, deixando para eles a tarefa de entender como as engrenagens da narrativa funcionam. Essa é uma das marcas de Lindelof, algo que fez com maestria em Watchmen e The Leftovers.
Outra peça fundamental de Mrs. Davis é a escolha do elenco, pela qual eu tenho que dar meus parabéns, são escolhas fantásticas. O grande destaque aqui realmente fica para Betty Gilpin, que não economiza em lágrimas e expressões, mas todo o elenco também está muito bem. Dando a impressão de que é apenas mais uma obra descompromissada, a minissérie tem momentos emotivos marcantes, principalmente quando se aproxima de sua reta final, como uma cena esplêndida no último episódio entre as personagens de Andy McQueen e Betty Gilpin. E ainda conta com a agradável aparição surpresa de Shohreh Aghdashloo, a eterna Chrisjen Avasarala de The Expanse, em um papel um tanto inesperado.
Divertida, irreverente e inteligente, Mrs. Davis é uma pérola e, com certeza, merece atenção. Planejada como uma série limitada, a obra se fecha satisfatoriamente em seu oitavo e último episódio. Infelizmente, a série ainda não conseguiu distribuição no Brasil, mas deve chegar em breve devido à boa repercussão dos episódios finais.
Mrs Davis (2023) – Minissérie Peacock, 8 Episódios de aprox. 40 – 50 Min. Criada por Tara Hernandez e Damon Lindelof Com Betty Gilpin, Jake McDorman, Andy McQueen, Chris Diamantopoulos, Katja Herbers, Elizabeth Marvel e outros.
Se você balançar uma árvore de séries de ficção científica, são grandes as chances de cair alguma produção com a estética cyberpunk ou uma ópera espacial estilo Battlestar Galactica ou The Expanse (que eu adoro, à propósito), mas não é todo dia que cai algo com uma ambientação retrofuturista. Claro que há exemplos, como o clássico Os Jetsons ou algo mais recente em Loki, que trouxe muito desse subgênero capaz de imaginar um possível futuro ambientado em um possível passado, principalmente nas sequências do protagonista nas instalações da agência TVA, que mesmo controlando toda a linha temporal do universo, é administrada através de muita papelada e modelos de computadores comuns do século passado.
Com muito do seu apelo envolvendo uma mescla do estilo art déco com a nostalgia pela estética das décadas de 1950 e 60, há temas que podem ser explorados em narrativas retrofuturistas que vão além da ficção científica das máquinas alimentadas por energia nuclear ou a tecnologia retrô, com máquinas de escrever, aquelas tvs de tubo gigantes, telefones de disco, e outras imagens que as futuras gerações vão precisar pesquisar para visualizar o que estou escrevendo.
O retrofuturismo também pode ser uma forte ferramenta de crítica política e social, principalmente considerando o contraste entre a cultura do século passado e o que vivemos – ou está por vir -, fazendo comentários sobre os costumes conservadores da época, como o “papel” da mulher nas relações sociais, o que pode render uma narrativa complexa sobre sexismo e abuso doméstico, se for bem trabalhado e não cair em um território insensível ou sensacionalista. O retrofuturismo costuma explorar os conceitos de burocracia, corrupção corporativa e a manipulação da mídia através da propaganda, temas bem trabalhados em obras como Brazil, de Terry Gilliam.
Considerando o cenário atual de crise econômica, ascensão de ideologias fascistas, violência contra minorias e desastres ambientais, uma série ambientada em um mundo retrofuturista tem todas as oportunidades para ser combustível tanto de nostalgia, quanto de crítica social. Assim, a série Olá, Amanhã!, distribuída pelo serviço de streaming Apple+, tinha potencial para ser uma grande obra de ficção científica, com apoio de um bom orçamento e ótimo elenco.
No mundo retrofuturista de Olá, Amanhã!, acompanhamos o cotidiano de Jack Billings (Billy Crudup), um carismático vendedor que lidera uma equipe profissional na missão de realizar os sonhos de seus clientes através de uma nova vida, convencendo-os a comprar uma residência na lua. A proposta é grande, mas a lábia de Jack e seus parceiros é maior, ao ponto de negociarem o impossível. Entre promessas absurdas, dívidas de jogos, familiares ausentes e uma cidade cheia de habitantes excêntricos, é apenas questão de tempo para algum desastre acontecer.
Levando em conta os elementos mencionados anteriormente, a série tem de tudo para construir um bom enredo e personagens envolventes, mas adianto que esse não é o forte da série. Há um excelente trabalho de ambientação por conta dos departamentos de figurino e fotografia, além do design de produção, com a arquitetura da cidade e os automóveis clássicos. É uma pena a série fazer tão pouco com essa ambientação, que é ótima, mas não parece afetar tanto a construção de mundo e a narrativa geral, em alguns episódios parece ser apenas um véu de apelo estético bem feito, mas de pouca interação com as personagens.
Outra oportunidade desperdiçada é o elenco de qualidade, que foi limitado a personagens sem muita dimensão, resumidos em alguma característica ou chamariz que tem graça nos primeiros minutos, mas logo se esgota. Billy Crudup e Haneefah Wood são os que recebem mais atenção do roteiro e possuem personagens mais envolventes, com tramas, subtramas e dramas pessoais bem estabelecidos. Embora seja ótimo assistir os dois – e algumas das melhores cenas dessa primeira temporada envolvem alguns embates e trocas de diálogo entre a dupla -, a série se apoia demais na sua muleta de “cidade cheia de habitantes excêntricos”, o que faz com que quase todo o resto do elenco seja obrigado a representar personagens que não vão além da sua caricatura, deixando atores e atrizes mais que competentes, como Hank Azaria e Alison Pill, representando papéis tão limitados que seus arcos se repetem mais de uma vez ao longo de dez episódios de apenas meia hora, e a sensação é de que o ritmo lento da série não ajuda.
Geralmente, adoro séries com um ritmo mais vagaroso, como acontece com Outer Range ou Invasão, mas Olá, Amanhã! parece confusa com suas próprias intenções, e por vezes parece emular a construção de tensão e a atmosfera misteriosa de produções como Ruptura (Severance), que também é da Apple+, mas trabalha com sucesso seus personagens caricatos (no bom sentido: eles são uma caricatura na superfície, mas muito melhor trabalhados). Talvez minha maior decepção com as personagens foi a presença de Matthew Maher, um ator tão engraçado e carismático que tentou ao máximo trazer algum charme e identidade para seu papel, mas ainda sofreu com o enredo repetitivo e caracterização preguiçosa.
Olá, Amanhã! tinha tudo para ser a próxima grande série de ficção científica da Apple+, mas não consegue construir bem seu mistério e personagens da mesma forma que as concorrentes do seu próprio serviço de streaming. Bem ambientado, ótimo apelo visual e um elenco de primeira, mas nenhum desses elementos consegue atingir seu potencial em uma história tão repetitiva que cansa.
Olá, Amanhã! / Hello, Tomorrow (2023) – Primeira Temporada Apple, 10 Episódios de aprox. 30 Min. Criada por Amit Bhalla e Lucas Jansen Com Billy Crudup, Haneefah Wood, ALison Pill, Nicholas Podany, Dewshane Williams, Hank Azaria, Matthew Maher e outros.
“Somos alienígenas, trabalhamos de forma misteriosa. Não podemos ser julgados por padrões humanos”.
Toda vez que surge uma nova animação, principalmente uma com temática sci-fi, já corro para assistir. No caso de Solar Opposites, a expectativa é ainda maior por conta dos nomes envolvidos na produção. Desenvolvida por Mike McMahan e Justin Roiland, o primeiro sendo um dos roteiristas e o segundo o co-criador de Rick and Morty, respectivamente, é óbvio que há uma cobrança por parte dos fãs.
Em Solar Opposites seguimos o cotidiano de uma família alienígena que precisou fugir de Schlorp, seu planeta-natal utópico que acabou atingido por um asteroide. Mas na procura por um novo lar, sua nave cai na Terra, onde eles agora vivem e reclamam dos costumes e rituais humanos. Os aliens Korvo e Terry são os guardiões de dois replicantes infantis, Yumyulack e Jesse. A interação entre eles acaba sendo similar a de um casal cuidando de suas crianças adotivas, assim temos Korvo e Terry procuram maneiras de se adequar a nova vida, enquanto Yumyulack e Jesse são matriculados em uma escola para aprender mais sobre os terráqueos.
A animação tem uma proposta comum de comédias situacionais (sitcoms). A primeira que me veio em mente foi a divertida Uma Família de Outro Mundo (3rd Rock From the Sun, no original), e é claro que Alf, o Eteimoso também explora essa premissa. Mas por termos alguém como Justin Roiland por trás da série, não conte com o tom leve e descontraído das produções que acabei de mencionar. Essa nova animação é insana, escatológica e cheia de humor negro.
Ao longo da curta temporada de apenas oito episódios, grande parte da comédia vem das tentativas – sem sucesso – dos alienígenas em se adaptar ao estilo de vida dos humanos. Situações absurdas como ter uma crise existencial ao perceber que um mascote da TV não é real ou ficar indignado com a forma como os humanos se satisfazem ao assistir um truque de máquina faz com que a solução dos alienígenas seja usar todo tipo de ferramenta ou tecnologia extraterrestre (como eles dizem, “baboseira sci-fi”) para tentar compreender as pessoas.
Vale mencionar que a maior parte dos humanos da série servem apenas como vítimas para os planos dos protagonistas, ou seja, há uma boa quantidade de violência e sangue na temporada. Mesmo que não seja oficial, Solar Opposites pode ser visto como um spin off de Rick and Morty, não só por compartilhar parte da equipe criativa, incluindo os animadores, mas pelo tom indiferente e anarquista das tramas.
Por mais que tenha algumas ótimas piadas e desenvolva bem as suas regras e limitações, talvez a falta de alguém como Dan Harmon (com quem Roiland criou Rick and Morty) tire um pouco do brilho dessa nova série. Harmon é responsável pela maior parte do humor metalinguístico e referencial de toda produção em que se envolve, e sua habilidade de elaborar comentários inteligentes e ácidos sobre a estrutura narrativa da TV seriam bem-vindos aqui.
Essa nova série está constantemente fazendo menções e inserindo piadas sobre outros programas, de clássicos como Quinta Dimensão até o sucesso Harry Potter. Chegam a colocar um Justin Roiland animado logo no primeiro episódio como easter egg. Mas nada disso parece ser o suficiente e na maioria das vezes essas referências soam vazias e sem razão. Se por um lado conseguem brincar com os roteiros e personagens de Gilmore Girls de um jeito que contribua para a narrativa, por outro tentam fazer um meta-comentário sobre o serviço de streaming Hulu, onde a animação é exibida, mas repetindo a mesma crítica em diversos episódios. Uma vez é engraçado, duas tudo bem, mas quase todo episódio tem uma piada assim, e essa repetição não contribui para o enredo, apenas distrai e nos lembra de algo que já sabemos. Harmon faz isso com um propósito, Roiland parece um pouco perdido nessa parte.
Continuando nas similaridades entre projetos, já que é inevitável compará-los, a dublagem mantém a mesma qualidade, mas fica difícil distinguir Korvo de Rick, já que os dois são personagens inteligentes dublados por Roiland e tem a mesma atitude sarcástica e arrogante. Mas isso pode ser mais um problema na construção dos personagens, que mesmo tendo características distintas, não tem arcos dramáticos atraentes o suficiente, resultando em conclusões pouco satisfatórias.
Outro indício de que os personagens principais precisam de mais do que apenas traços definidores é o fato de uma subtrama sobre humanos encolhidos e aprisionados no quarto dos aliens por vezes rouba a atenção e parece mais intrigante do que a trama principal. Nessa subtrama, temos uma narrativa clássica sobre ascensão e queda de distopias, o que é simples mas eficaz, principalmente porque os roteiristas parecem estar se divertindo mais ao criar uma nova civilização em volta desses humanos prisioneiros, com ratos servindo de locomoção ou M&Ms como moeda de troca, ao invés das aventuras de Korvo, Terry, Yumyulack e Jesse. O núcleo distópico é tão divertido e engraçado ao ponto de ter um episódio inteiro dedicado exclusivamente a ele, o que é bom mas nos faz lembrar que a trama secundária é envolvente que a principal.
Solar Opposites pode ter seus defeitos, mas é quando explora o caos do cotidiano que realmente brilha, e isso porque Justin Roiland é excelente em humor improvisado. Terminamos a temporada com algumas pontas soltas, e por mais que essa não tenha sido uma das animações mais marcantes do ano, talvez eu volte para mais no futuro. Por enquanto, vale a pena assistir: são apenas oito episódios e eles passam voando.
O trabalho do autor e ilustrador sueco Simon Stålenhag tem sido fascinante por conta de suas artes conceituais onde elementos futuristas são inseridos em suas fotografias, criando um cotidiano rodeado por máquinas e arquitetura que parecem ter saído de uma obra de ficção científica. Sua arte foi parar em alguns livros, como Things From The Flood e The Electric State; e também chegou aos videogames, onde contribuiu para o incrível visual do jogo No Man’s Sky. Mas a sua criação mais influente ainda é o seu primeiro livro de fotografias, Tales From The Loop, que rendeu um jogo de RPG e acabou de ser adaptado para uma série pelo serviço de streaming da Amazon, o Prime Video.
Inspirado nos livros de Stålenhag, que participa da série como roteirista e produtor executivo, Tales From The Loop conta com dez episódios e adaptação de Nathaniel Halpern, um dos responsáveis pela psicodélica e absurda série Legion, do canal FX. E uma das primeiras decisões a chamar atenção na série é o seu formato, que parece seguir uma linha mais antológica, o que não deixa de ser verdade, mas é uma definição limitada.
Seguimos a rotina dos habitantes de uma pequena cidade aparentemente pacata, mas localizada acima de uma instalação de pesquisa, onde se encontra uma máquina chamada The Loop, capaz de desvendar e explorar diversos mistérios do universo. Isso acaba afetando os habitantes, que experienciam situações inusitadas envolvendo inconsistências temporais, forças que desafiam as leis da física e outras coisas que poderiam ter saído de alguma obra de ficção científica.
Para observar a maneira como cada um é afetado pela máquina, a série carrega uma estrutura narrativa em que cada episódio segue o ponto de vista de um personagem diferente, mas todos acabam ligados de alguma maneira, não só por conta da cidade. Por isso que, ainda que pareça ser estabelecida como uma antologia, a história de Tales From The Loop adota uma linha narrativa que se complementa e, mesmo com o envolvimento de anomalias temporais, possui uma ordem cronológica, então indico que seja assistida em ordem.
Na maior parte da série, a trama gira em torno de duas famílias lidando com traumas diferentes, que sem saber, acabam conectadas por conta da máquina. É o máximo que posso dizer sem entregar mais detalhes, e vale a pena entrar de cabeça na série sem conhecimento prévio de alguns elementos porque ela traz revelações significativas, que ao contrário de outras produções do gênero, servem para construir um arco dramático mais importante que a própria ficção científica da cidade.
Essa preocupação diz bastante sobre a proposta da série, que usa de componentes retro futuristas e referências dos anos 70 e 80, além de menções a obras da cidade natal de Stålenhag, como o filme Mônica e o Desejo, do diretor sueco Ingmar Bergman, ilustrado na entrada de um cinema. Mas essas referências servem apenas para reforçar a ambientação e a belíssima direção de arte, deixando o drama dos personagens e o elemento humano como o principal objeto de estudo da série.
Enquanto alguns preferem simplesmente comparar a produção com sucessos como Stranger Things ou Black Mirror, considero Tales From The Loop algo próprio, com uma estrutura e atmosfera única, não só mais uma história sobre pequenas cidades afetadas por uma força misteriosa, o que é uma premissa bastante comum e pode ser vista desde o clássico Twin Peaks até a animação Gravity Falls. O importante não é a premissa, mas o que você faz com ela.
Os arcos dramáticos fazem com que a série tenha um ritmo mais lento, uma experiência introspectiva, com momentos de silêncio e um tom mais melancólico. Há episódios em que a trama principal não envolve diretamente as famílias, ainda assim contribui para a construção daquele mundo.
Cada episódio tem um ponto de vista completamente diferente do anterior, mas todos complementam a temporada introduzindo peças para um quebra-cabeça maior: em Loop seguimos uma garota tentando encontrar sua mãe, em Echo Sphere é apresentado um orbe influenciado pela passagem de tempo, e em Enemies descobrimos uma história de origem que não só nos informa sobre o presente como desenvolve um enredo sobre pessoas tentando corrigir o passado.
Episódios como Parallel e Stasis são os que mais se distanciam da trama principal, mas ainda assim tem seu próprio charme, principalmente Parallel, que começa como uma história sobre realidades paralelas e se transforma em um drama mais íntimo. Esses dois arriscam afetar a estrutura geral da temporada, mas não abandonam a proposta principal da série.
É notável como tantos nomes talentosos acabaram envolvidos nesse projeto, como a atriz Rebecca Hall e o veterano Jonathan Pryce, além de ter Jodie Foster na direção de um dos episódios. E Shane Carruth pode não ser um nome conhecido da maioria, mas foi uma boa surpresa ver que ele tem uma participação especial no elenco, mesmo que pequena. Para quem não sabe, Carruth dirigiu alguns filmes independentes de ficção científica, como o complexo Primer e o excelente Upstream Color.
Para terminar a menção de pessoas que admiro envolvidas nesse projeto, até mesmo o compositor Philip Glass faz parte do episódio inicial da temporada, mas a trilha sonora dos outros episódios é feita por Paul Leonard-Morgan, e ele não fica pra trás com um arranjo que atribui uma sensação quase nostálgica para a fotografia adaptada de Stålenhag.
Tales From The Loop é uma série que segue os moldes de outros grandes sucessos, mas se destaca na execução, apresentando mundos e personagens diversos sem depender de suas referências, explorando o que há de mais complexo na ficção científica, o ser humano.
Atenção: há spoilers das duas primeiras temporadas da série Westworld e do filme original que a inspirou. Leia por sua conta e risco, sabendo que esses prazeres violentos trazem fins violentos.
Poucas adaptações atingem o sucesso em sua transição do cinema para as séries como Westworld, indo da ficção científica carregada de ação ao drama existencial. Similares em vários aspectos, as duas versões também divergem drasticamente em outros, o que traz de volta o eterno debate sobre a importância de adaptar um material para novos veículos e cenários sociais, mas para tal precisamos de contexto.
Westworld: Onde Ninguém tem Alma (título brasileiro) chegou aos cinemas em 1973, com roteiro e direção de Michael Crichton, um nome bastante respeitado pelos fãs de ficção científica, responsável por obras literárias como O Enigma de Andrômeda e O Parque dos Dinossauros, que logo viriam a ser adaptados para o cinema.
A obra trouxe um conceito intrigante, imaginando um parque de diversões interativo onde você pode criar a experiência de épocas diferentes, como viver os tempos do velho-oeste, por exemplo. Para isso, uma companhia chamada Delos preenche esses parques com robôs de aparência humana realista capazes de interagir com os visitantes, até mesmo de forma íntima.
O filme foi um sucesso de crítica e bilheteria, rendendo uma continuação, Futureworld (intitulado no Brasil como o desnecessariamente longo Mundo Futuro: Ano 2003, Operação Terra) em 1976, mas esse não contava com o envolvimento de Crichton. Para continuar a franquia, a primeira tentativa de levar a história para a TV aconteceu em 1980, com Beyond Westworld. Servindo como um spin off do filme original, a série foi rapidamente cancelada, tendo produzido apenas cinco episódios.
Por um tempo, a animação do público para novo material da franquia diminuiu, até que em 2013 o canal por assinatura HBO confirmou uma nova série inspirada no filme, dessa vez comandado pelo casal Jonathan Nolan e Lisa Joy, com produção de J.J. Abrams, intitulada apenas Westworld. A estréia aconteceu em 2016, com uma temporada tão elogiada pela crítica quando o filme original, talvez até mais. E é por isso que pretendo debater um pouco os principais pontos divergentes entre o filme clássico e a adaptação seriada da HBO, que para muitos (incluindo o autor desse texto) consegue superar sua versão original em vários aspectos.
A série começa com a vantagem de ter um orçamento visivelmente superior ao filme original. Enquanto o longa sofreu nas mãos do estúdio MGM para conseguir $1,25 milhões, a HBO arrecadou estimados $100 milhões para sua temporada de estréia. É curioso como mesmo dividindo igualmente o valor entre cada um dos dez episódios da série, ainda há um investimento maior que o do filme. Mas o valor da série não era apenas monetário, ela veio com uma equipe mais profissional (Crichton ainda era um diretor iniciante quando seu filme foi lançado), carregando uma direção de arte belíssima, assim como figurino e cenografia, sem contar a excelente música de Ramin Djawadi.
Similaridades e Referências
É difícil resistir a tentação de colocar algumas referências ao material original em qualquer adaptação, e Westworld não é exceção. Uma das primeiras similaridades envolve a dupla de protagonistas do longa, Peter Martin (Richard Benjamin) e John Blane (James Brolin), que decidem se aventurar no mundo do velho oeste, mas enquanto Martin parece relutante em se entregar totalmente à experiência, Blane é um veterano confiante e ajuda seu amigo a aproveitar o lugar da melhor maneira. Esses dois possuem traços que podemos associar facilmente aos personagens William (Jimmi Simpson) e Logan (Ben Barnes) na versão da HBO, respectivamente.
A principal diferença na adaptação é que William tem uma ligação maior com Logan, sendo seu cunhado e possível herdeiro dos negócios da família, que possui investimentos no parque temático. Para criar uma conexão ainda maior, a versão mais velha de William, apelidada de Homem de Preto (Ed Harris), é uma clara referência ao principal antagonista do filme, o Pistoleiro, interpretado por Yul Brynner. Se no filme ele é um robô intimidador, na série passa a ser humano – mas não menos assustador.
Outro personagem importante para a série é Maeve, dona de um bordel chamado Mariposa. Também temos um bordel na versão cinematográfica, mas não com o mesmo nome, e ele é comandado por uma Miss Carrie, papel desempenhado por Majel Barrett, mais conhecida pela franquia Jornada nas Estrelas. Além de manter alguns personagens, mesmo que alterados, a série segue com o nome Delos para a companhia que financia e contribui para a criação de vários parques.
Há muitas referências ao longo da produção da HBO, mantendo alguns conceitos e elementos, como a sala de customização, onde você deixa sua roupa para trás e assume um traje mais apropriado com a temática do parque de sua escolha. No filme, o momento em que os protagonistas trocam de roupa serve como um olhar mais mundano dos bastidores, enquanto a série transforma uma simples decisão entre a cor de um chapéu em desenvolvimento de personagem, prevendo a eventual mudança de caráter entre William e o Homem de Preto.
Pequenos detalhes do filme foram usados na série, como a informação de que os robôs podiam ser identificados pela mão (no longa, elas entregam os robôs; na série isso é mencionado como “um problema antigo que a empresa não tem mais com suas criações”) ou a cena em que o Dr. Robert Ford (Anthony Hopkins), o criador do parque na versão para a TV, controla uma serpente com um comando de voz, espelhando uma sequência do filme em que John Blane é atacado pelo mesmo animal.
Por falar em Ford, a presença de Anthony Hopkins no elenco já é indício de algo grandioso, então é claro que seria uma oportunidade perdida não deixá-lo roubar um pouco a cena com longos monólogos e debates filosóficos com seu companheiro de trabalho, Bernard (Jeffrey Wright). Pelos nomes Ford e Bernard podemos ver também a forte influência da literatura, já que o nome dos dois foi tirado do clássico da ficção científica, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
Entrando em Westworld
Três parques são introduzidos no longa original e as temáticas são Medieval (no contexto europeu), Império Romano e, o principal, Velho Oeste, Westworld. Ainda que pareça pouco em comparação com a série (que já mencionou ter o dobro de parques), estamos falando de um filme de aproximadamente uma hora e meia, então a decisão foi desenvolver apenas os mundos Velho Oeste e Medieval, e mesmo assim, o Medieval pode ser considerado quase irrelevante no longa.
Depois de introduzido, tudo que fazemos no parque Medieval é seguir um casal em algumas cenas cômicas e sem conexão alguma com o drama dos verdadeiros protagonistas, Peter e John. É uma ótima proposta tentar nos colocar em novos mundos, mas o filme não parece saber como equilibrar as narrativas que realmente importam, e isso rende um ritmo bastante cansativo.
O filme alterna entre esses dois parques, mas também dá um pouco de atenção aos bastidores, mostrando a equipe de pesquisa e vigilância em sua sala branca comandando tudo. Talvez mais dessa equipe e menos do mundo Medieval pudesse entregar uma trama objetiva e sem excesso de tramas desnecessárias.
Quanto à série, é mencionada a existência de mais de um parque, mas a primeira temporada sabe que os personagens são mais importantes, então ela dá atenção exclusiva ao Velho Oeste. É apenas em sua segunda temporada que Westworld arrisca revelar dois novos parques: Shogun World, inspirado no japão feudal; e The Raj, recriando a Índia dominada pelos ingleses.
Questionando a natureza das adaptações
Adaptar não é apenas mudar alguns nomes e referenciar o material original. A transição de um formato para outro pode se fazer necessária por vários motivos, talvez uma releitura completa de uma obra, ou apenas uma atualização contemporânea, em alguns casos chega a ser uma corrupção total do original para elaborar uma crítica, mas o que vejo em Westworld é um caso em que a adaptação serve para explorar de maneira diferente os elementos da versão anterior, podendo aprimorá-los, trazendo um debate maior e até mais relevante através de temas que o original poderia ter estabelecido.
A adaptação da HBO altera e complementa algumas informações introduzidas no filme. Agora que termos como “sintético” e “inteligência artificial” fazem parte de nosso cotidiano, o que antes era conhecido como robô passa a ser chamado de Anfitrião, ou seja, essa é a denominação para os andróides prontos para receber os visitantes humanos, esses apelidados de Hóspedes.
Por falar nos personagens, esse foi um dos maiores acertos da série. No filme temos o implacável Pistoleiro, muito bem interpretado por Yul Brynner, com uma presença forte capaz de causar tensão em qualquer ambiente. Mas Ed Harris não fica atrás com seu Homem de Preto, que além de intimidador é um homem perturbado pelos demônios do passado, tão comprometido com os mistérios de Westworld ao ponto de colocar sua vida e a de outros humanos em risco.
Seguimos o ponto de vista de dois humanos com atitudes contrastantes na versão original, mas isso é deixado de lado assim que o longa se transforma em uma batalha entre os robôs defeituosos e eles. Na adaptação, os personagens tem características mais complexas, e assim observamos os dilemas existenciais de cada um, até mesmo dos Anfitriões, constantemente questionando sua realidade por conta de uma inteligência capaz de se adaptar (oferecimento de seu criador, Dr. Ford, fascinado pelas máquinas ao ponto de permitir que atinjam uma consciência própria). Isso não quer dizer que os episódios evitem sequências de ação, e essas são ótimas, mas a promessa da série é uma análise sobre a importância da identidade.
Outro avanço em questão de elenco e personagens é a presença de mulheres em papéis que não sejam apenas o de uma esposa entediada ou prostituta, as duas únicas opções no filme, que ao menos dá algumas falas para Majel Barrett, interpretando uma dona de bordel. Enquanto isso, a série é praticamente protagonizada por mulheres, o destaque indo para a dupla Dolores (Evan Rachel Wood) e Maeve (Thandie Newton), duas androides em busca de uma narrativa própria, mas apresentando métodos distintos para atingir a liberdade.
Em 1973, Michael Crichton dirigiu um filme cheio de conceitos envolventes e efeitos visuais impressionantes para a época, mas talvez Westworld tenha realmente mostrado seu verdadeiro potencial na transição para o formato seriado, onde os elementos do longa são explorados com mais atenção, e debates existenciais tomam conta de uma narrativa cada vez mais relevante para tempos em que um mundo similar ao de Westworld não parece tão ficção científica assim.