SPOILER PARA A PRIMEIRA TEMPORADA INTEIRA
A confirmação de uma nova série no universo Jornada nas Estrelas costuma ser recebida como uma boa notícia, e parece que teremos várias opções para entreter os fãs da franquia, seja com novas temporadas de Discovery, um spin off sobre a Seção 31, ou a animação Lower Decks, focada nos membros da tripulação que costumam ser representados como coadjuvantes. Mas nenhuma dessas novidades chamou tanta atenção quanto o retorno de Jean-Luc Picard, um dos capitães mais adorados da franquia e protagonista da série Jornada nas Estrelas: A Nova Geração (The Next Generation).
Interpretado por Patrick Stewart, Picard tinha a difícil tarefa de continuar o legado do carismático James T. Kirk (William Shatner) como o novo líder da franquia, o que conseguiu ao ponto de criar uma identidade forte o suficiente para dividir alguns fãs sobre qual seu capitão preferido. Outros personagens como Sisko, Janeway e Archer também assumiram o posto de capitão em seu próprio spin off derivado de Jornada nas Estrelas, mas o debate entre Kirk e Picard é recorrente. Ainda que Kirk seja importantíssimo para mim e sua “diplomacia de cowboy” tenha me divertido bastante, admito que Picard roubou meu coração com uma atitude menos extravagante e usando o discurso como a maior arma.
Há vários obstáculos no caminho de uma nova série estrelada por Picard, incluindo a necessidade de atrair uma audiência inédita para um personagem estabelecido, sem contar que os fãs já possuem uma série da franquia Jornada atualmente, Discovery, com uma abordagem mais dinâmica e voltada para a estética estabelecida por J.J. Abrams nos filmes da linha temporal Kelvin (criada para distinguir os filmes de Abrams, situados em uma “realidade alternativa”, dos clássicos da linha Prime). Isso pode ser um problema, já que uma série focada em Picard parece demandar um tratamento mais introspectivo, com atenção maior aos diálogos e as atuações, se nos basearmos na abordagem da série Nova Geração.
O resultado é um híbrido entre a ação rápida da timeline Kelvin e da série Discovery, com toques de A Nova Geração, dando espaço para pequenos momentos de reflexão e silêncio (pequenos mesmo, infelizmente). Talvez nem todos concordem com essa decisão, mas particularmente considero um compromisso necessário, desde que tenhamos um enredo e personagens consistentes.
Da mesma forma, Picard se beneficia dos avanços tecnológicos e o orçamento atual da televisão para entregar um visual cinematográfico, com uma câmera dinâmica, capaz de dar mais atenção aos detalhes, além de um tratamento melhor nas cores e uma estética limpa. Ao longo dos dez episódios tivemos coreografias mais elaboradas, não só nas empolgantes batalhas com Phasers, mas nos confrontos espaciais com a presença de novas naves e algumas naves clássicas remodeladas. É um pouco estranho ver tanta ação em volta de Picard, mas faz parte do compromisso mencionado no parágrafo anterior, então é compreensível.
Começamos a série com um Picard aposentado, conhecido como o ex-almirante que abandonou a federação para liderar uma frota de resgate depois do surgimento de uma supernova que acabou destruindo o planeta Romulus (uma ligação com os filmes da linha Kelvin). O que já era uma missão arriscada, logo transforma-se em tragédia depois de um grupo de sintéticos se rebelarem, causando a devastação do estaleiro de Utopia Planitia, localizada em Marte. Além de lidar com as repercussões de suas ações, Picard conhece Dahj, uma jovem procurando refúgio ao lado do ex-almirante, mas as coisas pioram quando ela é procurada por uma entidade misteriosa chamada Zhat Vash, organização secreta envolvida com a Tal Shiar, liderada por agentes romulanos.
Ainda que tenha algumas vantagens em comparação à Nova Geração, Jornada nas Estrelas: Picard sofre em outros departamentos, principalmente no enredo e na estrutura narrativa, algo que a franquia costuma trabalhar com muito cuidado. Muitos fãs costumam colocar a culpa de algumas inconsistências do universo Trek no atual responsável pela franquia, o produtor executivo Alex Kurtzman, uma figura que esteve por trás dos filmes de J.J.Abrams e supervisiona todas as novidades envolvendo Jornada nas Estrelas.
Independente do responsável (vamos ser honestos, é o próprio Kurtzman), estou aqui para questionar alguns pontos da trama e elementos narrativos que poderiam ser melhor aproveitados ou simplesmente abandonados por completo, mas também devo dar crédito onde ele merece ser dado.
Mais tripulantes, mais problemas
Patrick Stewart é uma figura forte o suficiente para sustentar a popularidade de uma série, mas precisamos aceitar que ele está mais velho e não pode estar sozinho em uma trama sobre exploração espacial, ainda mais uma cheia de ação como a franquia tem sido nos últimos anos (queira ou não).
Para ajudá-lo, a série traz alguns personagens interessantes, como o sedutor capitão Christóbal Rios (Santiago Cabrera), a ex-membro da federação Raffi Musiker (Michelle Hurd), a ciberneticista Dra. Agnes Jurati (Alison Pill) e o romulano guerreiro Elnor (Evan Evagora). Além deles, temos o retorno de personagens estabelecidos, como Sete de Nove (a excelente Jeri Ryan), de Jornada nas Estrelas: Voyager; o borg Hugh (Jonathan Del Arco) e o andróide Data (Brent Spiner), mesmo que através de visões e flashbacks.
Algumas dessas adições foram muito boas, introduzindo novos componentes que enriquecem o universo da franquia, como a personagem Rios, sua nave La Sirena e os vários tripulantes holográficos, cada um carregando um pouco da personalidade do capitão. O conceito de uma Holomatrix, com um “Holograma Médico de Emergência” (EMH), não é novidade, principalmente porque já tivemos o ótimo Doutor da nave USS Voyager, mas a interação do capitão com suas outras versões criou alguns dos momentos de alívio cômico mais genuínos na série, isso por conta da atuação de Cabrera.
Raffi e Elnor são antigos conhecidos de Picard quando começamos a série, mas enquanto Raffi recebe uma subtrama pouco explorada envolvendo seu filho, com o qual não se comunica mais, Elnor é uma proposta atraente mas sem desenvolvimento algum (seu único propósito é surgir em cenas onde a ação é necessária, como um deus ex machina na maioria das vezes).
A Dra. Jurati é um caso mais complicado. Ela é a personagem mais passiva da temporada, geralmente reagindo e fazendo pequenos comentários tímidos, mas sua presença na aventura pareceu estranha desde o princípio. Com uma motivação fraca, a revelação de que ela estava infiltrada na missão de Picard para atrapalhar seus planos foi um dos pontos mais previsíveis da série. Para piorar, ela é responsável pela morte de Bruce Maddox, personagem pouco presente – mas importante – em Nova Geração; e mesmo depois de admitir o crime, termina a temporada como se nada tivesse acontecido, livre, leve e solta ao lado de seu novo namorado, Rios. Devo admitir que esse é um dos casais mais sem química que já vi, mas quem sou eu para julgar?
Vale mencionar aqui que algumas pessoas já estão incomodadas com uma rápida sequência em que Sete de Nove e Raffi parecem estar trocando carícias por alguns segundos, e mesmo que eu considere Raffi um pouco cliché (com sua atitude indiferente e piadas sarcásticas), convenhamos que a base de fãs de Jornada nas Estrelas conta com uma parcela pouco liberal, o que não faz sentido considerando o quanto a franquia lutou para derrubar preconceitos de gênero.
Alguns personagens ainda não foram mencionados, isso porque eles vão estar presentes em breve. Vamos continuar.
Desejo de morte
Ao tentar estabelecer um tom “sombrio” para Jornada nas Estrelas: Picard, a série tenta executar cenas com mais violência e sangue, o que nunca foi uma prioridade para a franquia, mas aparentemente consideram necessário que todos assistam a gráfica morte de Icheb, personagem presente em Voyager que teve um arco trágico como um ex-borg tentando se adaptar ao mundo e aprender como ser tão talentoso quanto sua líder, Sete de Nove.
É uma pena ver que aqui o reduziram a uma rápida cena em que tem seu olho arrancado e é deixado em uma mesa de cirurgia para morrer, uma conclusão deprimente para alguém que representava um pouco da visão otimista do futuro que fez a franquia ser tão adorada. E isso é tudo, Icheb foi arrastado de volta para Jornada com o único propósito de ser uma morte chocante o suficiente para motivar Sete de Nove a seguir em uma vingança que dura… um episódio.
E o extermínio de personagens já estabelecidos não se limita ao borg Icheb. Por algum motivo, Hugh também é morto em um confronto com uma das principais antagonistas da temporada, a romulana Narissa Rizzo (Peyton List). Hugh é um dos símbolos mais importantes para a história dos Borg, o primeiro do coletivo a adquirir uma identidade, destaque de mais de um episódio de Nova Geração, ele representa o que todos os borg podem ser. Infelizmente, em Picard ele serve como uma participação especial para agradar os fãs de longa data e fonte de explicação para algumas pontas soltas da trama, e no fim segue o mesmo rumo de Icheb, em uma morte menos violenta, mas igualmente desnecessária.
As críticas sobre a forma que a série parece “matar seus personagens” apenas como um recurso para impactar o público, tem sido uma preocupação desde o momento em que a Dra. Jurati mata Bruce Maddox no mesmo episódio em que ele foi introduzido.
Mas nem tudo é negativo. Tirando todas as mortes (nunca escrevi tanto a palavra morte, e nunca imaginei escrever em um texto sobre Jornada nas Estrelas) desnecessárias, a série teve uma saída inteligente para utilizar a personagem do tenente-comandante Data, aqui atuando como uma representação das frustrações de Picard e a memória de alguém que entendia e acreditava em sua integridade. A decisão de finalmente dar um descanso para a consciência de Data, que teve seu corpo destruído após se sacrificar no filme Jornada nas Estrelas: Nêmesis, foi um dos grandes acertos da temporada.
Antes de sair deste tópico, não vou deixar de mencionar a “morte” do próprio Jean-Luc Picard, que depois de sofrer por anos sabendo de sua inevitável síndrome cerebral (Irumodic Syndrome), acaba sucumbindo. Mas através de uma saída conveniente do roteiro, Picard sobrevive recebendo um “novo corpo” desenvolvido pelo Dr. Altan Inigo Soong, o filho de Noonian Soong, responsável pela criação de Data. Ainda não sei como me sinto sobre isso, então melhor mudar de assunto.
Eu, Borg?
Antes mencionei um problema com a estrutura narrativa da temporada, e não foi à toa. Além do desconforto de toda a violência desnecessária (já tivemos cenas pesadas na franquia, mas o olho arrancado de Icheb parece ter saído de algo como Jogos Mortais) e as mortes para chocar o público, Picard tenta inserir constantemente referências e easter eggs para os fãs de Nova Geração.
Não há problema algum nisso, eu mesmo adoro perceber alguma menção ao resto do universo de Jornada, seja nos diálogos ou no visual, mas parece que os produtores de Picard queriam demais introduzir de uma vez todos os elementos que fizeram do personagem tão famoso, entre eles a sua relação com os borg, uma parte essencial da história de Jean-Luc, mas que aqui se resume em um ponto solto da trama que realmente não se conecta com os demais.
Parte da primeira metade da temporada envolve Picard e sua nova equipe a procura da androide Soji (Isa Briones), que está localizada em um Cubo Borg abandonado chamado de Artefato, transformado em laboratório de pesquisa pelos romulanos. Eles estão usando o local para estudar os borg com a ajuda de Hugh.
Um dos romulanos é o misterioso Narek (Harry Treadaway), que rapidamente seduz Soji para investigá-la. Eles desenvolvem um relacionamento, mas Narek é constantemente alertado por sua irmã, Narissa, sobre a importância da missão e como não deve se distrair. A relação entre Narek e Narissa carrega um caráter quase incestuoso (isso pode ter a ver com a visão do produtor Alex Kurtman, explico mais pra frente) nunca justificado.
Quando Picard finalmente chega ao Artefato, tem uma rápida conversa com Hugh, mas logo precisa fugir por conta de Narissa, que está caçando Soji. A interação entre Picard e Soji é rápida e se limita ao cliché do “protagonista pedindo que alguém em apuros confie nele sem motivo algum”. Com a ajuda de Hugh, eles conseguem fugir para o planeta Nepenthe, onde Will Riker (Jonathan Frakes) e Deanna Troi (Marina Sirtis) moram. Hugh, Elnor e Sete de Nove permanecem no Artefato para tentar impedir Narissa de destruir os borg remanescentes que permanecem em descanso e desconectados do coletivo.
Sete de Nove tenta se comunicar com o Artefato e acordar os borg, mas eles são ejetados para o espaço por uma Narissa furiosa. Vendo que não há mais o que se fazer com o Artefato, a subtrama do cubo borg é abandonada e parece ter servido apenas para introduzir Narek e Soji, mas nenhum dos dois tem uma forte ligação com os borg, um é romulado e a outra é androide, então eles trabalharem no Artefato é apenas circunstancial. O retorno de Hugh não tem peso significativo na trama, nem sua morte é o suficiente para afetar o resto da história já que os próximos episódios correm para apresentar Coppelius, o planeta natal de Soji e os vários sintéticos do Dr. Altan Inigo Soong.
Em Coppelius, mais subtramas envolvendo traição e conspiração tomam conta da maior parte da história, e agora que Narissa parece ter sido derrotada por Sete de Nove (depois de ser derrubada de uma altura que mataria qualquer um; mas não há limites para as formas mirabolantes na qual os roteiristas podem trazer personagens de volta), Narek aparentemente muda de lado e a irmã de Soji assume o posto de antagonista.
O pior de dois mundos
Alex Kurtman é um problema. Não o considero uma ameaça para a popularidade da franquia, na verdade acho que Jornada nas Estrelas tem chegado com cada vez mais força para novos públicos, e é ótimo ver esse sucesso na TV. Enquanto alguns fãs reclamam sobre a representatividade de minorias e exigem menos foco em debates políticos, o que não faz sentido algum já que esses tópicos são praticamente intrínsecos da franquia (falamos sobre isso em outro texto), acredito que o maior problema enfrentado por Jornada está na narrativa.
Em entrevista para a Variety em 2019, o produtor executivo Alex Kurtman fez questão de mencionar como a série Game of Thrones o influenciou durante o desenvolvimento de Jornada nas Estrelas: Picard. Além das duas séries não parecerem semelhantes, seja por temas ou gênero, o sucesso da HBO carrega um tom mais sério e realista, o que não é novidade para Jornada, mas GOT preza por enredos carregados de conspiração, traição e reviravoltas. E é exatamente o que Kurtman procura para suas novas produções, tentando “subverter expectativas” (suas próprias palavras), não importa o quanto isso possa afetar negativamente a trama, a prioridade é surpreender à qualquer custo (agora são as minhas palavras).
“Ninguém reclama por ter que pagar para assistir Game of Thrones. Podemos fazer o mesmo” (Kurtman, 2019)
Pode não parecer, mas podemos ver algumas influências de Game of Thrones em Discovery e Picard, como a relação aparentemente incestuosa entre Narek e Narissa, claramente inspirada em Jamie e Cercei Lannister; até mesmo a sequência em que Lorca luta contra um guarda raivoso da Imperatriz Georgiu é bastante similar ao famoso combate entre Oberyn Martell e o Montanha na quarta temporada de GOT.
Não só a coreografia parece “pegar emprestado” alguns movimentos, como a motivação para o guarda estar tão nervoso envolve a morte de sua irmã pelas mãos de Lorca, assim como Martell procura vingança pelo Montanha ter matado a sua irmã. Como se já não fossem coincidências o suficiente, a conclusão da batalha em Discovery não surpreende quem já assistiu a de Game of Thrones. E esses são apenas alguns casos soltos.
Na mesma entrevista, Kurtman se orgulha por inserir elementos como nudez Klingon (esse assunto também não é novidade, e já tivemos casos onde a nudez foi um problema, principalmente na sexualização desnecessária de algumas personagens, como T´Pol em Enterprise) e palavrões: “Usamos a palavra ‘f*ck’, a propósito”.
O que acabei de mencionar não é exatamente um problema com a narrativa, mas um indício de como Discovery e Picard planejam “subverter as expectativas” do público através da violência, sexo e linguagem vulgar, e é assim que a narrativa é afetada negativamente, por dar destaque para o choque, deixando de lado o que realmente fez de Jornada nas Estrelas uma franquia única, com debates envolventes e questões que eram realmente levadas a sério, não só introduzidas com o propósito de surpreender todos com o quão corajosos eles são em colocar uma almirante da frota estelar ofendendo Picard com a palavra “Sheer Fucking Hubris” (algo como “Que arrogância de merda”) ou uma romulana perguntando para seu próprio irmão se ele “f*deu” outra personagem ¯\_(ツ)_/¯
Para onde vamos, afinal?
Jornada nas Estrelas nunca teve medo de tocar em assuntos delicados, debatendo política, racismo, gênero e o que fosse necessário. Isso era o suficiente para construir uma história envolvente, que fizesse o público realmente refletir sobre seu papel nessas questões. Mas é difícil termos uma conversa significativa e necessária quando a principal preocupação da franquia passa a ser a “subversão de expectativas” e a corrida para chegar na próxima reviravolta superficial.
O formato serializado de Picard pode ser um dos responsáveis por termos tantas revelações, mortes e mudanças no foco narrativo, isso porque ao contrário do formato clássico, onde cada episódio trazia uma história contida, agora temos dez episódios com um arco principal que precisa ser constantemente abastecido com intrigas e surpresas para manter o público investido. Talvez eu esteja atribuindo a culpa no formato com certo exagero, mas não é como se a afirmação não tivesse algum nível de veracidade.
E depois de tudo, parece que odiei Picard, mas fiz questão de ressaltar os aspectos positivos, principalmente nos primeiros parágrafos desse texto. Ainda há muito o que eu gostaria de mencionar por aqui, como as participações especiais, a forma como os vilões foram representados, as referências, entre outras coisas, e talvez eu volte a falar sobre Picard em outro momento. Por enquanto, vamos ficar na torcida para mais novidades sobre as futuras séries da franquia (estou ansioso para Lower Decks), e aproveite para comentar com as suas considerações sobre essa primeira temporada de Jornada nas Estrelas: Picard.
Até a próxima.